Por: Silvério da Costa Oliveira.
Nas ciências do espírito, o espírito objetivou-se, nelas formaram-se fins e valores realizaram-se, e é precisamente esse elemento espiritual, que tomou forma nelas, que é apreendido pela compreensão. Dilthey.
Wilhelm Christian Ludwig Dilthey (1833-1911) nasceu em Wiesbaden-Biebrich, região do Reno, Confederação Alemã, e faleceu aos 77 anos de idade em Seis am Schlern, Áustria-Hungria. Filho de um teólogo da Igreja Reformada (Calvinista), cresceu em um ambiente familiar marcado pela tradição religiosa, estudou Teologia na Universidade de Heidelberg e Filosofia na Universidade de Berlim. Durante esse período, ele se aprofundou na obra de pensadores como Friedrich Schleiermacher, cuja hermenêutica e abordagem à religião o inspiraram a explorar a compreensão da experiência humana. Concluiu o ensino fundamental em Wiesbaden e em seguida começou a estudar teologia, inicialmente em Heidelberg e depois em Berlim, mas não deu sequência a estes estudos, tendo transferido seu interesse para a filosofia.
Obteve seu doutorado em Berlim no ano de 1864 com uma tese sobre a ética de Schleiermacher, marcando sua transição definitiva para a filosofia. Após obter o doutorado e a habilitação (qualificação para lecionar em nível universitário), Dilthey lecionou brevemente como Privatdozent na Universidade de Berlim. Em seguida foi nomeado para uma cátedra na Universidade de Basileia em 1866, posteriormente em Kiel, 1868 e Breslau, 1871. Vindo, finalmente, a suceder R. H. Lotze na Universidade de Berlim em 1882, ocupando a cadeira de Hegel, lugar no qual ficou até o final de sua vida. Atuou, portanto, como professor em Basileia, Kiel, Breslau e Berlim, esta última a partir de 1882, ocupando a cátedra de filosofia. Sua área de interesse e estudo se encontra junto a história, filosofia, psicologia e pedagogia. Sua obra busca o entendimento da experiência e da mente humana. Seus trabalhos influenciaram a filosofia da mente e a hermenêutica.
Em 1874, ele se casou com Katherine Püttmann, tendo três filhos do relacionamento (um menino e duas meninas). Ao longo de sua carreira, Dilthey enfrentou desafios pessoais, incluindo problemas de saúde que o obrigaram a se afastar temporariamente do ensino. Ele era um erudito prolífico, produzindo obras que mesclavam biografia, psicologia e hermenêutica. Em seus últimos anos, ele se retirou para o Tirol do Sul, na Itália, onde continuou a trabalhar em projetos inacabados. Dilthey faleceu em 1 de outubro de 1911, em Seis am Schlern, deixando um legado que moldou o campo das humanidades. Sua vida reflete uma busca incessante por compreender o ser humano em seu contexto histórico e cultural, sem reduzi-lo a leis universais rígidas.
Dilthey desenvolveu uma filosofia que buscava compreender a experiência humana em seu contexto histórico e cultural, destacando-se por sua distinção entre as ciências da natureza e as ciências do espírito, além de conceitos centrais como “Erlebnis” (experiência vivida), “Verstehen” (compreensão) e a crítica da razão histórica.
O conceito de “Erlebnis” é central na filosofia de Dilthey. Ele se refere à experiência vivida, um momento pleno de significado que integra pensamento, sentimento e vontade na consciência individual. Diferentemente de uma experiência meramente sensorial ou fragmentada, o “Erlebnis” é uma unidade significativa que reflete a totalidade da vida psíquica. Por exemplo, ler um poema ou vivenciar um evento histórico marcante não é apenas um ato isolado, mas uma experiência que conecta o indivíduo ao seu contexto cultural e histórico. Dilthey via o “Erlebnis” como a base para compreender a vida humana. Ele pensava que as ciências do espírito deveriam partir dessas experiências vividas para interpretar textos, eventos históricos ou obras artísticas, captando sua riqueza e profundidade.
A “Verstehen” é o método fundamental das ciências do espírito, segundo Dilthey. Trata-se de um processo interpretativo que busca entender as intenções, motivações e significados por trás das ações humanas. Diferentemente da explicação causal, que procura causas externas, a compreensão mergulha na interioridade do sujeito, considerando o contexto histórico e cultural. Por exemplo, ao estudar uma carta de Goethe, o historiador não apenas analisa o texto, mas tenta compreender os sentimentos, intenções e o mundo cultural do autor. Dilthey enfatizou que a “Verstehen” exige empatia e uma conexão com a experiência vivida do outro, muitas vezes mediada pela hermenêutica, que ele desenvolveu a partir das ideias de Schleiermacher.
No primeiro volume de “Introdução ao Estudo das Ciências Humanas”, 1883, faz a distinção entre ciências do espírito (humanas) e da natureza. As Ciências da Natureza (Naturwissenschaften) buscam explicar (erklären) os fenômenos por meio de leis causais e generalizações objetivas. Já as Ciências do Espírito (Geisteswissenschaften) buscam compreender (verstehen) as manifestações da vida humana, como a história, a cultura, a arte, a religião, a literatura, etc. O importante aqui nesta distinção é que a mesma não depende do objeto em estudo e sim do método, já que um mesmo fenômeno pode ser abordado de ambas perspectivas. Portanto, Dilthey separa as ciências da natureza das do espírito, não pelo objeto estudado, que pode ser o mesmo, mas sim pelo método empregado. Essa abordagem metodológica foi revolucionária, pois legitimou as humanidades como um campo científico autônomo, com uma lógica própria distinta das ciências naturais.
As ciências do espírito têm como objeto a realidade histórico-social, como tal é o caso da história, economia, ciência do direito, ciência da religião, literatura, música e psicologia. Para estudarmos as ciências do espírito precisamos empregar um método diferente do usado pelas ciências da natureza. Nas ciências do espirito devemos fazer uso da hermenêutica. Quando o pesquisador adota em sua abordagem de estudo um método causal-explicativo, este se encontra no campo pertencente às ciências naturais, já quando adota um método compreensivo-interpretativo, passa a atuar junto as ciências do espírito. Os três momentos do conhecer em que se fundam as ciências do espírito são: 1- a vivência, 2- a expressão, 3- a compreensão.
A distinção entre por um lado ciências naturais e por outro ciências do espírito ou humanas, se funda sobre o que é natural ou explicável e aquilo que é humano ou compreensível. Quando pensamos em algo que seja explicável, pensamos em algo que é obtido por meio de inferências, algo que é passível de ser generalizável, algo que é racional e apresenta regularidade. Já quando pensamos em algo que seja compreensível, entendemos que possua um significado e que este significado só possa se apreendido por meio de um dado contexto histórico social.
Por meio da história as culturas desenvolvidas e os indivíduos nelas presentes podem se expressar e se transformar. Cabe às ciências do espírito se dedicarem ao estudo da singularidade dos eventos históricos e não na busca por leis gerais.
O método proposto por Dilthey para o estudo das ciências do espírito é o da hermenêutica. Esta expressão provém do grego, e pode ser entendida como “traduzir” ou “interpretar”. Trata-se, portanto, de uma abordagem que se propõe a interpretar ou compreender seu objeto de estudo. Esta proposta atua como se fosse um círculo, já que o todo só pode ser compreendido por meio do estudo das partes e estas só podem ser compreendidas por meio do todo. Para entendermos as expressões humanas, estas devem ser estudadas dentro de seu contexto histórico (individual e social). Nossa vida está vinculada a significados e estes obtêm sua coerência por meio de uma interpretação dentro de determinado contexto.
Ao destacar a importância da compreensão (Verstehen) em oposição à explicação (Erklären) das ciências naturais, entende Dilthey que a hermenêutica é a metodologia mais adequada para ser adotada nas ciências do espírito. Dilthey entende que a compreensão se faz presente pela reconstrução do significado e do contexto histórico de expressões presentes na vida humana, sejam estas produções literárias ou organizacionais. A base da compreensão se dá por meio da experiência vivida (Erlebnis).
Em sua filosofia da vida (Lebensphilosophie) entendia que a vida se apresenta como um fluxo contínuo de experiências não passível de redução a conceitos fixos. Para entendermos corretamente a vida precisamos estuda-la dentro de modo contextual e interpretativo, já que esta mostra-se presa a sua história e cultura.
Nos últimos anos de sua vida (1911), Dilthey desenvolve uma tipologia baseada em três visões de mundo (Weltanschauungen): Naturalismo, idealismo subjetivo e idealismo objetivo. Entende o naturalismo como uma visão de mundo na qual tudo é determinado pela natureza e nela inclui os epicuristas. Já por idealismo subjetivo ou da liberdade, entende uma visão de mundo na qual os humanos são tidos como sendo conscientes de sua separação da natureza por meio do livre-arbítrio. Aqui teríamos as filosofias de Friedrich Schiller e Immanuel Kant. No idealismo objetivo os humanos são conscientes de sua harmonia com a natureza e aqui se encaixam as filosofias de Hegel, Spinoza e Giordano Bruno.
Dilthey chamou o seu projeto, de fundamentar filosoficamente as ciências do espírito (humanas) de “Crítica da razão histórica”. Dilthey aspirava criar uma “crítica da razão histórica”, inspirada pela “Crítica da Razão Pura” de Kant, mas voltada para o domínio histórico e humano. Ele buscava estabelecer os fundamentos epistemológicos das ciências do espírito, investigando como o conhecimento histórico é possível. Para Dilthey, a história não é apenas uma sequência de eventos, mas um processo vivo de significados criado pelos seres humanos. Sua crítica explorava como as experiências individuais e coletivas se entrelaçam na construção do mundo histórico, rejeitando visões positivistas que reduziam a história a leis universais.
Dilthey é considerado um dos precursores da filosofia da vida, que enfatiza a vida como um processo dinâmico, criativo e historicamente situado. Ele via a vida humana como o ponto de partida para a filosofia, argumentando que o conhecimento deve ser ancorado na experiência concreta do viver. A vida, para Dilthey, é sempre histórica, moldada por contextos culturais, sociais e temporais. Essa perspectiva influenciou sua análise de como indivíduos e sociedades expressam suas experiências por meio de arte, religião e instituições.
Dilthey ampliou a hermenêutica, originalmente desenvolvida por Schleiermacher para a interpretação de textos bíblicos, transformando-a em um método geral para as ciências do espírito. Ele via a hermenêutica como uma ferramenta para compreender as expressões da vida humana (como textos, obras de arte ou ações históricas) ao relacioná-las ao contexto do autor e ao momento histórico. A hermenêutica de Dilthey enfatiza o “círculo hermenêutico”, no qual a compreensão de uma parte (como uma frase) depende do entendimento do todo (o texto ou a cultura) e vice-versa.
Nos últimos anos de sua vida, Dilthey desenvolveu a ideia de “Weltanschauungen” (visões de mundo), que são maneiras pelas quais indivíduos e culturas organizam suas experiências e valores. Ele identificou três tipos principais: naturalismo; idealismo objetivo; e idealismo subjetivo.
Naturalismo: Prioriza a realidade material e as leis naturais.
Idealismo objetivo: Enfatiza a harmonia entre o indivíduo e o universo, como no pensamento de Hegel.
Idealismo subjetivo: Centra-se na liberdade e na experiência interior, como em Kant ou Schopenhauer.
Essas visões de mundo não são excludentes, mas representam diferentes formas de interpretar a vida, influenciando sistemas filosóficos, religiosos e artísticos.
Dilthey propôs uma psicologia descritiva e analítica, distinta da psicologia experimental de sua época. Em vez de buscar leis gerais do comportamento, ele focava na descrição das estruturas da consciência e da experiência vivida, analisando como os processos de pensar, sentir e querer se interligam. Essa abordagem servia como base para compreender as ações humanas nas ciências do espírito, em vez de reduzi-las a modelos causais.
As ideias de Dilthey foram fundamentais para legitimar as ciências humanas como um campo autônomo, com métodos próprios. Sua ênfase na compreensão e na historicidade influenciou filósofos como Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Jürgen Habermas, além de disciplinas como a sociologia e a história cultural. Ele ofereceu uma alternativa ao Positivismo, destacando a riqueza da experiência humana e a necessidade de interpretá-la em seu contexto.
ALGUMAS DE SUAS PRINCIPAIS OBRAS
1- Leben Schleiermachers. Título em português: Vida de Schleiermacher. Data da primeira publicação: 1870.
Biografia detalhada em dois volumes de Friedrich Schleiermacher, explorando sua vida, desenvolvimento intelectual e contribuições para a teologia liberal e a hermenêutica, servindo como base para os interesses iniciais de Dilthey em história intelectual e interpretação.
2- Einleitung in die Geisteswissenschaften. Título em português: Introdução às Ciências Humanas. Data da primeira publicação: 1883.
Obra fundamental que distingue as ciências da natureza das ciências do espírito (humanas), propondo uma fundamentação metodológica para o estudo da sociedade e da história por meio da compreensão (Verstehen) em vez da explicação causal, enfatizando a hermenêutica como método chave.
3- Ideen zu einer beschreibenden und zergliedernden Psychologie. Título em português: Ideias para uma Psicologia Descritiva e Analítica. Data da primeira publicação: 1894.
Propõe uma psicologia descritiva e analítica que se concentra na estrutura da experiência vivida (Erlebnis), distinguindo-a da psicologia explicativa naturalista, e analisa o nexo estrutural da consciência envolvendo representar, sentir e querer.
4- Beiträge zum Studium der Individualität. Título em português: Contribuições ao Estudo da Individualidade. Data da primeira publicação: 1895.
Explora a individualidade como algo adquirido historicamente, enfatizando a configuração estrutural de qualidades dominantes e subordinadas, e critica distinções nomotéticas-idiográficas, destacando a conexão entre o geral e o individual nas ciências humanas.
5- Das Erlebnis und die Dichtung, Lessing, Goethe, Novalis, Hölderlin. Título em português: A Experiência Vivida e a Poesia. Data da primeira publicação: 1905.
Examina a relação entre a experiência vivida e a criação poética, analisando como a imaginação literária expressa e transforma a vida interior, com estudos sobre autores como Goethe e Novalis, enfatizando o papel da arte na compreensão humana.
6- Die Jugendgeschichte Hegels und andere Abhandlungen zur Geschichte des deutschen Idealismus. Título em português: A História da Juventude de Hegel. Data da primeira publicação: 1907.
Estudo biográfico e histórico sobre os anos formativos de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, traçando o desenvolvimento de seu pensamento idealista em contexto cultural e romântico, ilustrando o método de Dilthey de análise holística de figuras históricas.
7- Der Aufbau der geschichtlichen Welt in den Geisteswissenschaften. Título em português: A Construção do Mundo Histórico nas Ciências do Espírito. Data da primeira publicação: 1910.
Investiga como as ciências do espírito constroem o entendimento do mundo histórico, destacando a singularidade dos eventos, o papel do contexto e a relatividade das perspectivas, como parte do projeto maior de crítica da razão histórica.
8- Die Typen der Weltanschauung und ihre Ausbildung in den metaphysischen Systemen. Título em português: Os Tipos de Visão de Mundo. Data da primeira publicação: 1911.
Classifica as visões de mundo em três tipos principais (naturalismo, idealismo objetivo e idealismo subjetivo) e sua manifestação em sistemas metafísicos, contribuindo para a filosofia da vida e a análise comparativa de orientações existenciais.
Silvério da Costa Oliveira.
Prof. Dr. Silvério da Costa Oliveira.
Site: www.doutorsilverio.com
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