Por Silvério da Costa
Oliveira.
Sobre Spinoza
Spinoza está
entre meus filósofos favoritos desde antes de cursar e concluir meu curso de
filosofia pela PUC RJ e isto já faz alguns bons anos. Recentemente adquiri a
obra completa deste autor e retomei seu estudo, daí estas notas, nas quais
também incluo uma pequena reflexão sobre o músico Raul Seixas em um álbum de
1974 e aponto para um vínculo com a sabedoria oriental e o hinduismo, como
estradas que partindo de lugares distintos e seguindo por diferentes percursos,
se aproximam de um lugar comum no conhecimento humano.
Vamos começar
dando alguns dados biográficos sobre Spinoza e na seqüência tentar apresentar
de forma sucinta e didática algumas noções sobre seu pensamento. Deste modo
iremos começar a pensar o mundo dentro da visão filosófica de Spinoza e com um
entendimento sobre o posicionamento histórico deste pensador, mesmo que
parcialmente, mas pelo menos proporcionar uma idéia em linhas gerais de como
encontramos em seu tempo este filósofo.
Baruch Spinoza
é um grande e importante filósofo do século XVII que exerceu e ainda exerce
forte influência em nosso pensamento e sociedade, mesmo agora no século XXI,
tendo influenciado diversos autores e correntes de pensamento. Spinoza
(1632-1677) morre com somente 44 anos de idade de tuberculose, que alguns
relacionam ao seu trabalho como polidor de lentes e sua constante exposição à
poeira dali resultante. Nasce e morre na Holanda, países baixos, tendo nascido em
24 de novembro na cidade de Amsterdã e perecido em 21 de fevereiro na cidade de
Haia.
Cabe ainda
umas palavras iniciais sobre o pré-nome deste filósofo. Baruch é o nome judeu,
que após o chérem, banimento e também amaldiçoado pela comunidade judaica de Amsterdã
- Holanda, foi deixado de lado por Spinoza. Como a família provém de Portugal,
seu nome português é Bento. Spinoza também é conhecido por Benedictus, nome com
que assinava em latim.
Spinoza é
judeu e sua família é proveniente inicialmente da Espanha, tendo em virtude das
perseguições por parte de um governo de forte influencia católica, migrado para
Portugal e depois, pelo mesmo motivo de perseguições religiosas, mudado para a
Holanda, onde havia uma maior tolerância por parte do governo. No entanto, a
comunidade judaica a qual inicialmente pertencia a família de Spinoza era
voltada para o comércio e estava acostumada a lidar com diversas culturas,
tendo uma visão mais ampla do mundo e já a comunidade judaica presente na
Holanda não dispunha, à época, de tal visão, sendo bem mais conservadora em
relação aos princípios culturais e religiosos. Isto, mais o provável medo de
que as opiniões expressadas por Spinoza pudessem colocar a comunidade judaica
em evidência e trazer a ira dos cristãos, fez com que a comunidade judaica
viesse a banir e amaldiçoar Spinoza mesmo antes deste publicar seu primeiro
livro. Este ato imposto pelo chérem, apesar de tentativa, em anos recentes, de
ser revisto pela comunidade judaica, vigora até os presentes dias.
Antes da migração,
a família de Spinoza converteu-se ao cristianismo. Em verdade, conversão
forçada para fugir das perseguições e usada somente de fachada, pois, no íntimo
familiar continuavam a manter as mesmas práticas religiosas, sócio-culturais e
tradições judaicas e não cristãs, com a única diferença de o fazerem
secretamente. Na época, isto era comum por parte da comunidade judaica visando
evitar as perseguições religiosas e tais judeus assim falsamente convertidos,
bem como seus descendentes, eram chamados de marranos.
A expressão
marrano se refere, portanto, aos judeus que viviam na península ibérica,
Portugal e Espanha, e foram forçados a se converterem ao cristianismo para
escaparem da santa inquisição e fora uma denominação comum usada entre os
séculos XV e XVII. Quanto à origem da palavra, para alguns historiadores a mesma
faz uma referência à conversão forçada e por vezes fingida e já para outros ao
animal porco, talvez numa referência irônica a proibição dos judeus e mouros
(habitantes do norte da África convertidos ao islamismo - mulçumano) de comerem
carne de porco.
Para qualquer
estudioso sério de Spinoza, toda a sua obra, incluindo as cartas trocadas, são
de vital importância para o entendimento do pensamento deste filósofo, no
entanto, destaque maior deve ser dado a dois livros em particular,
primeiramente ao “Tratado teológico político”, publicado anonimamente em 1670 e
que trouxe à época diversas reações hostis que fizeram o autor optar por
publicar sua obra após sua morte, deste modo, o livro “Ética, demonstrada a
maneira dos geômetras” foi publicado postumamente pelos amigos de Spinoza no
mesmo ano de sua morte.
No “Tratado
teológico político” Spinoza apresenta uma bem estruturada exposição sobre
noções por demais importantes em sociedade, defendendo a liberdade de
pensamento e expressão e a democracia como melhor forma de governo. Nesta obra
faz oposição ao poder religioso atuando na esfera política e também oposição a
qualquer forma de intolerância.
Já em sua obra
“Ética, demonstrada a maneira dos geômetras” apresenta um tratado que pretende
abarcar as principais linhas do pensamento filosófico. Dividida em cinco
partes, cada parte da Ética aborda um ponto crucial da filosofia, como é o caso
da ontologia, estudo do Ser, na parte 1; da gnoseologia, teoria do
conhecimento, epistemologia, na parte 2; dos afetos e emotividade, emoções,
paixões, na parte 3; da moral e dos valores, na parte 4; e da liberdade e
beatitude, na parte 5.
Na parte 1 do
livro “Ética”, 1677, nos fala em uma substância única. Tudo ao nosso redor,
incluindo a nós próprios, somos parte desta única substância. René Descartes
tinha chegado a duas substâncias, uma material, a res extensa, e outra
pensante, a res cogito, e simultaneamente a dificuldade de duas coisas
completamente distintas agirem e interagirem entre si, dificuldade esta que
levou Descartes a propor a glândula pineal como lugar desta interação e
dificuldade esta que desaparece quando não mais existem duas substâncias e sim
somente uma. Atente-se ainda que além destas duas substâncias, para Descartes
nós teríamos ainda a Deus, como ser transcendente e não imanente como o propõe
Spinoza.
Se tudo é uma
coisa só, se só existe uma única substância, não cabe falar em um deus fora
deste contexto, pois, tudo é deus, se algo é negado por Spinoza, como deixou
claro Hegel, não é deus e sim o próprio cosmos, pois tudo é parte integrante do
corpo de deus.
Se tudo é
substância, sendo esta deus, esta se manifesta, se expressa, por meio de
infinitos atributos dos quais nós, seres humanos, somos capazes de compreender
com o uso de nossa razão somente dois, os mesmos dois já demonstrados por
Descartes, o pensamento e a extensão. Por sua vez, cada atributo se manifesta
por um número infinito de modos, pelos quais os percebemos. Por exemplo, no atributo
extensão temos como modos as leis do movimento e do repouso, e já no atributo
pensamento temos como modos a vontade e o intelecto divino, frutos das
conseqüências de sua essência, sempre dentro do determinismo das leis inerentes
ao seu ser.
Segundo
Spinoza, Deus não é antropomórfico e nem existe uma finalidade organizando a
natureza. Não há um projeto de salvação como querem as religiões e nem deus
possui paixões humanas. Em verdade, de acordo com o pensamento de Spinoza, deus
iguala-se a natureza e sua liberdade provém de seguir estritamente as leis de
sua própria essência, não sendo determinado por causas externas. Deste modo,
não convém atribuir a bondade ou a maldade a desígnios provenientes de deus.
Deus não é bom ou mal. Tentar justificar a existência do mal em um universo
regido por um deus totalmente bom é fruto da ignorância e um dos problemas que
surge ao adotar-se um deus com paixões semelhantes as nossas e um projeto
finalista para a humanidade. Sacrifícios a deus de nada valem e em nada influem
em nosso destino governado por leis imutáveis da natureza.
Deste modo,
deus é incapaz de alterar a seu bel prazer as leis da natureza, pois estas
compõem sua própria essência, não havendo, portanto, livre arbítrio e sim um
total determinismo, mas cabe lembrar, no entanto, que determinismo é diferente
de fatalismo. Seguem-se leis imutáveis e não uma finalidade e destino imutável.
Claro, no entanto, que se soubéssemos todas as causas e variáveis possíveis
poderíamos prever com exatidão um fato ainda por ocorrer, mas este conhecimento
completo só cabe a deus.
A liberdade é não
ser determinado por causas externas, somente por suas próprias necessidades
oriundas de sua natureza, de sua essência, deste modo, deus não pode jamais
mudar ou alterar de qualquer modo as leis da natureza que compõem a sua própria
essência.
E como só há
uma única substância e não qualquer outro número, não cabe pensarmos em uma
criatura externa a isto tudo e que possa ser chamada de deus, pois, deus é a
própria totalidade desta substância, não sendo, portanto, transcendente a mesma
e sim imanente. Deste modo, aqueles críticos que chamaram Spinoza de panteísta
ou de ateísta, estão ambos errados. É incorreto atribuir o panteísmo a Spinoza,
pois deus não está em tudo, não há uma infinidade de deuses ou uma presença de
deus em todos os lugares, em verdade, tudo é deus e uma única coisa, uma única
substância, um único Ser, do qual somos parte integrante de seu corpo. Também
incorreto o uso do termo ateísmo, pois em momento algum Spinoza nega a
existência de Deus, se bem que possa negar tudo o mais.
Na parte 2 deste
livro Spinoza argumenta no sentido de um paralelismo entre mente e corpo que no
ser humano dá origem ao conhecimento. Entre idéias e coisas existe uma relação
de correspondência sem causalidade, pois trata-se da mesma substância
compreendida ora por um atributo e ora por outro.
Argumenta
também que deus é infinito e eterno, mas que o ser humano é finito. Deus tudo
sabe, mas o ser humano tem limites ao seu conhecimento. No entanto, podemos nos
aproximar do conhecimento divino e ter a posse de verdades imutáveis por meio
de nossa razão, fazendo uso de idéias adequadas, que são as idéias claras e
distintas já expostas anteriormente por Descartes. Idéias claras e distintas
são verdadeiras e, portanto, idéias adequadas. Trata-se de uma idéia pela qual
possa-se afirmar ou negar algo sem a necessidade de confronto com o objeto. Daí
Descartes e Spinoza serem corretamente classificados entre os filósofos
Racionalistas, em oposição aos Empiristas. Já uma idéia inadequada ou erro se
dá pelo desconhecimento de toda a cadeia causal, o erro surge da incompletude,
por não termos o conhecimento total de algo e sim parcial. A teoria do erro em
Spinoza se baseia em um conhecimento deficiente.
Na parte 3
Spinoza afirma que afetos, emoções e paixões não são em si mesmas nem boas, nem
más, e sim necessários, pois, fazem parte da natureza. As emoções humanas
vinculam-se a um impulso de autopreservação, a sobrevivência, diante do qual
temos um aumento da própria energia vital, força, alegria e diminuição de
tristeza – Conatus. Isto muito aproxima Spinoza como precursor de Nietzsche com
o conceito de vontade de potência.
Segundo
Spinoza não desejamos algo por este ser bom em si mesmo, mas consideramos bom
aquilo que inicialmente desejamos e queremos para nós. O ser humano se move
entre dois principais afetos que são a alegria e a tristeza, destes dois afetos
se originam outros dois, o amor e o ódio. O amor voltado para o que nos causa
alegria e o ódio voltado para o que nos causa tristeza. Por sua vez, a alegria
proporciona um aumento de nosso poder enquanto que a tristeza uma diminuição
deste mesmo poder.
Na parte 4,
Spinoza realiza uma análise das idéias adequadas e inadequadas, sendo que estas
últimas propiciam a passividade em relação às causas externas tornando o ser
humano um escravo destas causas. Também fica evidente pela argumentação de
Spinoza que é pela razão que encontramos o melhor caminho.
Não existiriam
o Bem e o Mal absoluto como o querem outros filósofos ou religiões, uma vez que
estes assim são entendidos de acordo com a utilidade que possam ter para que
nós consigamos o que queremos. Deste modo, Bem e Mal são definidos por Spinoza
de modo que o primeiro é algo que nos seja considerado como útil e o segundo
algo que nos impeça de obtê-lo. A virtude se iguala ao Bem, sendo para o ser
humano aquilo que o faz prosseguir para a realização de sua essência, a
virtude, portanto, é prosseguir naquilo que é útil para sua autopreservação.
Também muito
interessante Spinoza colocar que um afeto não pode ser impedido por outra coisa
que não seja outro afeto e não pela razão, crença ou qualquer outro recurso. Um
afeto não pode ser parado ou eliminado senão por outro afeto mais forte.
Spinoza iguala
o bom ao útil e cita como coisas boas o viver em sociedade, a união das
pessoas, viver pela razão.
Na quinta
parte desta obra, Spinoza trata da liberdade e da beatitude e nos informa que a
mente do ser humano tem um aspecto eterno que a aproxima da divindade. Isto ocorre
por meio de idéias que não dependem do tempo, havendo um encontro intelectual
com deus. E é justamente neste amor intelectual que encontramos a máxima
felicidade e beatitude
Divagações
sobre tema
Bem, até aqui
expliquei de modo didático o pensamento do filósofo Spinoza, como professor, e
deste modo, se o interesse do leitor era unicamente a compreensão de uma visão
geral desta filosofia, este é o momento de encerrar a leitura, pois, nas linhas
que se seguem meu compromisso será outro e irei divagar livremente sobre o
tema.
Como leitor de
Spinoza e ouvinte e fã musical de Raul Seixas, não posso deixar de assinalar
semelhanças com a música “Gita” e a primeira parte da Ética de Spinoza. Raul
Seixas provavelmente buscou sua inspiração para a letra desta música no livro
sagrado hindu Bhagavad Gita, ou talvez mais especificamente em determinado
diálogo entre o discípulo Arjuna e o mestre Krishna, quando este explica o
mundo e universo enquanto manifestação de deus. Isto, claro está, sem em
momento algum desconsiderar a influência do livro “The book of the law” (O
livro da lei) ou de outras fontes provindas direta ou indiretamente do próprio
autor, Aleister Crowley.
De fato,
independente de Raul ter tido contato ou não com a obra de Spinoza, fica claro
que ambos encontram eco para suas obras na sabedoria milenar do povo hindu.
Penso que por estradas diferentes, por caminhos diversos, podemos chegar ao
mesmo destino, mesmo que dito e explicado em linguagens distintas, seja esta a
linguagem de uma tradição religiosa, de uma poesia musical ou de um tratado
filosófico.
No mesmo álbum
musical de Raul Seixas citado acima, Gita, de 1974, temos outra música que bem
retrata o pensamento social de Spinoza, “Sociedade alternativa”, quando na
poesia musical este nos diz que “Faze o que queres, há de ser tudo da lei”.
Como nem todos
os possíveis leitores deste texto possam conhecer a letra da música Gita, irei
apresentando-a conforme o desenrolar de minha exposição, se o leitor tiver
oportunidade, lembro que uma música ganha algo mais quando executada e músicas
foram feitas para serem escutadas e não somente lidas.
Eu, que já andei pelos quatro cantos do mundo
procurando
Foi justamente num sonho que Ele me falou
Às vezes você me pergunta
Por que é que eu sou tão calado
Não falo de amor quase nada
Nem fico sorrindo ao teu lado
Você pensa em mim toda hora
Me come, me cospe, me deixa
Talvez você não entenda
Mas hoje eu vou lhe mostrar
A parte
inicial da música entra como uma introdução, mas vejamos bem os detalhes, pois
os mesmos são inúmeros e fazem referências importantes para pontos que agora
não pretendo abordar. Muitos entenderam e eu também me incluo aqui, que a letra
faz referência a Divindade, só que no caso, esta criatura aparece calada, nada
fala e nem se mostra, não fala de amor e podemos acrescentar que muito menos de
ódio, mas simultaneamente está em todo lugar, a ponto de estar no alimento que
comemos e mesmo em nossas secreções.
Eu sou a luz das estrelas
Eu sou a cor do luar
Eu sou as coisas da vida
Eu sou o medo de amar
Eu sou o medo do fraco
A força da imaginação
O blefe do jogador
Eu sou, eu fui, eu vou
(Gita! Gita!
Gita! Gita! Gita!)
Eu sou o seu sacrifício
A placa de contramão
O sangue no olhar do vampiro
E as juras de maldição
Eu sou a vela que acende
Eu sou a luz que se apaga
Eu sou a beira do abismo
Eu sou o tudo e o nada
Se pensarmos a
par com a primeira parte da Ética, entendemos que só existe uma única
substância, sendo tudo o mais originário desta substância. Alguns falam que
Spinoza é ateu e outros que ele é panteísta, mas na verdade ele não é nem uma
coisa nem outra, pois, para ele tudo é deus e ele nega todo o restante,
inclusive a “eu” que aqui escrevo ou a “você” que agora lê, pois, seríamos
parte integrante desta criatura única. Do mesmo modo que a unha de um de meus
dedos é parte de meu corpo e não um ser independente, nós somos parte de um
todo maior, único ser existente e que tudo engloba. Deste modo negamos a
existência individual de tudo, pois tudo é deus. Deus é o que comemos e o que
cuspimos, a luz das estrelas, a cor do luar, as coisas da vida, o medo de amar,
o medo do fraco, a força da imaginação, o blefe do jogador, o sacrifício, a
placa de contramão, o sangue no olhar do vampiro, as juras de maldição, a vela
que acende, a luz que se apaga, a beira do abismo.
Também está
presente a característica de deus ser infinito e eterno, pois não há outra
substância para definir seus limites, se este fosse finito, em algum lugar
teria de haver outra substância nos contornos de sua finitude. Também não há
tempo, pois deus sempre foi e será, já que ele não cria e nem é criado. O deus
de Spinoza não é um deus criador. Deste modo, chama a atenção a letra quando
esta afirma que “eu sou, eu fui, eu vou” ou ainda que “eu sou o tudo e o nada”.
Este tudo é a única substância, que é o deus de Spinoza, e ele é mudo, pois não
vai se manifestar antropomorficamente a quem quer que seja, não se trata de um
deus pessoal como o temos nas religiões originárias do personagem bíblico
Abraão. Ele não fala, ele não escreve mandamentos em tábuas de pedra ou dita
livros aos profetas. Ele não fala pela nossa linguagem, mas pode ser lido sim,
pela ciência ao estudar as leis que regem a natureza. Deste modo é correto
falarmos que o tudo é nada e que o nada é tudo, pois só há um, e este um é o
todo absoluto, única substância do qual tudo e todos fazemos parte.
Havendo uma
única substância, um único deus, todas as emoções são como se cenas de um filme
gravado em um DVD ou um antigo rolo de filme, tudo é um e o um é tudo.
Esta única
substância possui um número infinito de atributos, dos quais nós, seres humanos
só conseguimos conhecer dois, como bem explicou René Descartes em sua obra.
Trata-se da coisa pensante e da coisa extensa. Quando fazemos uso de nosso
aparelho de celular, ou de nosso carro ou qualquer outra coisa material,
estamos diante da coisa extensa e quando você pensa naquilo que escrevo você
faz uso da coisa pensante. Para nós, tudo se resume a estes dois atributos da
substância, mas para esta, são somente dois de um número infinito e que por sua
vez se subdividem em um número também infinito de modos.
Vamos pensar
por meio de uma metáfora, imaginemos que o vasto oceano seja a substância e seu
movimento ondulatório seja um dos atributos pelo qual o conhecemos, ao focarmos
em uma única onda que em algum momento teve um início e terá um fim, se
reintegrando ao oceano e perdendo para sempre o que foi um dia sua
individualidade e singularidade, só não perdendo aquelas características que
compartilha com o próprio oceano do qual faz parte integrante, teríamos que o
oceano pode ser visto como a substância e o movimento ondulatório como um de
seus inúmeros atributos, já a onda que por um breve momento existiu não passa
de um dos modos infinitos do atributo ondulatório.
O músico,
enquanto poeta, nos apresenta em uma bela linguagem que fez enorme sucesso à
época, o que Spinoza nos apresenta em uma linguagem mais difícil, que é a
linguagem filosófica e ainda poderíamos ter a linguagem religiosa tentando
expor o mesmo tema, mas neste caso, nas religiões orientais, onde talvez o
músico tenha buscado sua inspiração.
Por que você me pergunta?
Perguntas não vão lhe mostrar
Que eu sou feito da terra
Do fogo, da água e do ar
Você me tem todo dia
Mas não sabe se é bom ou ruim
Mas saiba que eu estou em você
Mas você não está em mim
Das telhas, eu sou o telhado
A pesca do pescador
A letra A tem meu nome
Dos sonhos, eu sou o amor
Eu sou a dona de casa
Nos pegue-pagues do mundo
Eu sou a mão do carrasco
Sou raso, largo, profundo
Se só há uma
sustância, esta é tudo, seja isto a terra, o fogo, a água ou o ar. E aqui temos
uma outra referência filosófica Ocidental, pois, são os quatro elementos
propostos pelos gregos antigos pelos quais tudo o mais seria feito.
E é claro que
vemos a deus todos os dias, pois está não somente ao nosso redor, como em nós
próprios, sendo a própria natureza, a qual não é boa ou má. Não é correto dizer
que algo feito pela natureza seja algo bom ou ruim, pois, a natureza não faz
julgamentos morais de acordo com nossos padrões morais, religiosos ou
filosóficos. A natureza segue suas leis inerentes ao seu ser e simplesmente é,
não sendo em si boa ou má. Somos nós que fazemos julgamentos de valor sobre as
coisas dadas pela natureza.
A única frase
nesta música que foge ao pensamento de Spinoza e a aproxima do pensamento
cristão é quando o poeta afirma que “mas saiba que eu estou em você, mas você
não está em mim”, pois, dentro da lógica da filosofia de Spinoza, sendo tudo
uma única substância, esta não está em mim e sim eu nela, sou parte dela, isto
pensando dentro da teoria dos conjuntos.
Tudo não passa
de uma única substância com infinitos atributos e estes com infinitos modos. O
deus de Spinoza é as telhas da casa, mas também o todo do telhado, a pesca e o
próprio pescador bem como a intenção de pescar. É a letra A, mas também todas
as letras, bem como o mantra usado na meditação pelos religiosos hindus. Deus é
a dona de casa nos pegue pagues da vida enquanto as compras faz, é a mão do
carrasco e também a vítima deste, e claro, toda e qualquer medida, como, por
exemplo, mas não somente estas, o raso, largo, profundo, bem como vistas como
metáfora do conhecimento que possamos ter ou obter.
(Gita! Gita! Gita! Gita! Gita!)
Eu sou a mosca da sopa
E o dente do tubarão
Eu sou os olhos do cego
E a cegueira da visão
Eu, mas eu sou o amargo da língua
A mãe, o pai e o avô
O filho que ainda não veio
O início, o fim e o meio
O início, o fim e o meio
Eu sou o início, o fim e o meio
Eu sou o início, o fim e o meio
Como só há uma
substância, esta é a mosca da sopa, o dente do tubarão, os olhos do cego, a
cegueira da visão, o amargo da língua, a mãe, o pai e o avô. Havendo aqui
também uma referência a eternidade e a infinitude. Basta observarmos a
seqüência, quanto ao filho que ainda não veio, o início, o fim e o meio repetido
quatro vezes, que, aliás, faz referência mística e filosófica a antiguidade
ocidental, pois, o número quatro representa uma totalidade, o retorno de uma
totalidade que antes havia com o uno e fora quebrada com o dois e se apresenta
tanto com os elementos positivos quanto com os elementos negativos. Pensando em
termos ocidentais, na antiguidade o quatro representava não somente os aspectos
positivos da Divindade e sim estes somados com todos os aspectos demoníacos também
existentes, daí ser uma divindade superior ao três, bem retratado pela
santíssima trindade cristã, pois nesta acrescenta o demônio.
Claro também
está que se só há uma substância e tudo nela faz parte, Spinoza é corretamente
monoteísta, pois, só há um deus e não vários deuses.
O que busco
nestas divagações não é em hipótese alguma afirmar que o músico e poeta que
criou esta e outras músicas dedicou algum tempo de sua vida ao estudo deste
filósofo, na verdade, tendo-o feito ou não, para mim isto é irrelevante. O que
quero demonstrar é que a filosofia é um modo de expressão de coisas universais
que podem e são também expressadas por outras formas culturais, mesmo sem o
conhecimento direto dos fundamentos filosóficos. Encontramos em filmes do
cinema e da tv, séries de tv, livros e revistas, mesmo desenhos animados por
vezes trazem noções profundas de conhecimento filosófico que tende a se perder
na cultura popular.
Engraçado que
a mesma cultura popular que elogia uma determinada obra musical ou outra,
elevando-a a altos patamares de vendas e divulgação, não aceitaria a explicação
racional e filosófica do que em verdade ali é exposto. Muitas pessoas do meu
convívio que adoram esta música, não concebem as conseqüências de sua letra e a
rejeitariam por completo se fossem forçados a pensar nas conseqüências da
mesma. As pessoas em geral são seres racionais que fazem questão de
comportarem-se como se seres irracionais fossem.
É mais
provável que as fontes desta música estejam na religião hindu por meio de
divulgadores da cultura religiosa deste povo no Ocidente. Provavelmente seria
mais fácil encontrar a presença do deus Brahma do que do filósofo Spinoza, mas
aí também vai nosso paralelismo cultural, ao constatar que outra cultura e
religião possa exprimir conceitos, que se bem que em outra e diversa linguagem,
muito venha a se aproximar de nossa cultura ocidental com a filosofia.
Além do deus
Brahma, que forma a trindade hindu, podemos também pensar na forma masculina e
neutra, não personalizada enquanto princípio divino, brahman, que nos apresenta
a idéia do absoluto.
O deus de
Spinoza não deve ser entendido como um deus cristão, não faz sentido falarmos
em um deus criador, em imortalidade da alma, em paraíso ou inferno ou
purgatório e muito menos em algum tipo de julgamento divino, projeto divino,
povo escolhido ou mesmo mandamentos ou livros de deus. Se existe um livro
escrito por deus este é o próprio deus enquanto natureza e não um texto ditado
por uma criatura transcendente à criação a algum profeta de seu culto, não, o
deus de Spinoza existe, mas é imanente. A necessidade de muitos em afirmar ser
este ateu ou panteísta vem do preconceito de olhar o pensamento de Spinoza pelo
prisma de alguma religião Abraâmica e assim, como este nega toda e qualquer
religião nestes termos, estas pessoas equivocadamente o rotulam como ateu ou,
quando muito, panteísta.
Em verdade,
não sei qual foi o verdadeiro contato histórico que o Raul Seixas teve com este
tema. Mas claramente o mesmo conseguiu com graça e maestria, simplificar e colocar
em uma belíssima letra de música uma temática profunda e complexa de uma forma
mais inteligível. Se bem que eu acredite que a grande maioria das pessoas que
escutem a música não tenham noção do que de fato estão escutando.
Link
de vídeos de minha autoria no YouTube sobre Spinoza:
Silvério
da Costa Oliveira.
Prof. Dr. Silvério da Costa
Oliveira.
Blog “Comportamento Crítico”:
Blog “Ser Escritor”:
(Respeite os Direitos Autorais –
Respeite a autoria do texto – Todo autor tem o direito de ter seu nome citado
junto aos textos de sua autoria)