Por: Silvério da Costa Oliveira.
Félix Guattari
Félix Guattari (1930-1992) foi escritor, roteirista, filósofo e ativista revolucionário francês a favor da esquerda comunista. Estudou filosofia na Sorbonne, em Paris, vindo a diplomar-se no ano de 1953. Interessou-se pela Psicanálise e pela Psiquiatria, tendo a partir de 1955 trabalhado no hospital psiquiátrico de La Borde, sob a direção de Jean Oury. Neste hospital Guattari atuou como pioneiro na implementação de práticas terapêuticas consideradas inovadoras, com base na psicanálise e na psicoterapia institucional.
Guattari trabalhou em algumas instituições psiquiátricas no decorrer de sua vida, na ordem cronológica temos: 1- Clinique des Maladies Mentales et de l'Encéphale (CMME), na década de 1950, 2- Clinique de La Borde, da década de 1950 a 1980, 3- Centre d'études, de recherches et de formation institutionnelles (CERFI), décadas de 1960 e 1970, 4- Institut de Recherche et d'Innovation (IRI), a partir de sua fundação em 1989. Destas clínicas há de se destacar o papel desempenhado pela Clinique de La Borde na vida de Guattari. Nesta clínica temos a presença de vários profissionais militantes políticos de esquerda, vinculados ao partido comunista e defendendo bandeiras coerentes com sua ideologia política por um prisma identitário.
Conhecido particularmente por sua colaboração e coautoria em algumas obras, com o filósofo Gilles Deleuze, quem conheceu no ano de 1968. Conjuntamente com Deleuze, publicou “O anti-Édipo”, em 1972, e “Mil Platôs”, em 1980. Nestes trabalhos e parceria, desenvolveu o conceito de “esquizoanálse”, além de estudar questões vinculadas ao desejo, à sociedade e ao poder. Considerado por alguns comentadores como representante do pós-estruturalismo.
Atuou como militante político pró-esquerda política, tendo se filiado a grupos e partidos comunistas. Profundamente envolvido com questões políticas e sociais, participou ativamente dos protestos de maio de 1968, na França, bem como, atuou em defesa da Palestina contra os israelenses que ocupavam seu território, do Vietnã contra os franceses e americanos, e mesmo do Brasil contra o regime civil-militar que dominou o país de 1964 a 1984. Atuou de modo ativo na busca por transformações sociais, pautadas em uma ideologia revolucionária de esquerda política pró comunismo e identitária.
Dentre os conceitos e ideias desenvolvidos por Guattari, temos: transversalidade, ecosofia, caosmose, desterritorialização, ritornelo, singularidade, produção de subjetividade e capitalismo mundial integrado. Em sua obra, discutiu temas, tais como: a transdisciplinaridade, o desejo, as instituições. Também defendeu a antipsiquiatria e combateu noções e conceitos básicos da psicanálise. Guattari se posiciona de modo crítico ao poder presente na sociedade.
Buscou desenvolver uma abordagem transdisciplinar em sua obra. Em “As três ecologias”, de 1989, ampliou o campo de sua análise visando incluir a esfera social, psicológica e ecológica.
O pensamento filosófico de Guattari se mostra como sendo complexo e inovador diante da filosofia tradicional, vinculado a bandeiras político-ideológicas da esquerda política, como sua atitude de se filiar a partidos e associações comunistas de mais de uma orientação, deixam claro no decorrer de sua vida. Seu pensamento filosófico perpassa diversas áreas do saber humano, tais como: psicanálise, filosofia, psiquiatria, política e ecologia.
IDEIAS
Guattari propõe o conceito de “ecosofia”, pelo qual expressa as formas como os sujeitos interagem entre si e com o meio ambiente. A ecosofia tem como base a união entre três ecologias: meio ambiente, relações sociais e subjetividade humana. Na ecosofia temos um estudo de como compreendemos, aprendemos e agimos, a partir do meio no qual estamos inseridos, atuando na problemática ambiental. Por meio da ecosofia busca Guattari compreender que a natureza e os humanos fazem parte de um mesmo ecossistema comunicativo. Por meio de tal conceito torna-se possível a discussão de temáticas associadas ao meio ambiente com a filosofia. A subjetividade da condição humana encontra-se resumida nos problemas ambientais decorrentes da evolução da sociedade na qual vive. Neste tocante, encontramos aspectos econômicos, políticos, sociais e educacionais. Mais que uma reflexão sobre temas na ecologia, a ecosofia mostra-se como sendo uma busca por ações concretas, apontando para a interação entre o humano e o meio ambiente.
O conceito de “ecosofia” está mais associado a Guattari, apesar de sua colaboração com Deleuze. Este conceito mostra-se como sendo uma síntese entre ecologia por um lado e filosofia por outro. Por meio do conceito de “ecosofia”, busca Guattari estudar a interconexão entre ecologia, subjetividade e sociedade.
Por meio do conceito de “ecosofia” busca-se uma integração entre a ecologia e a filosofia, ultrapassando um entendimento unicamente ambiental. Há por meio de tal conceito a intenção de abordar as inter-relações complexas entre o ambiente natural, as estruturas sociais e a subjetividade humana. Busca-se uma abordagem que seja interdisciplinar, que possa conectar questões provindas do meio ambiente, da sociedade e da esfera psicológica, rompendo as barreiras existentes entre as disciplinas para melhor trabalhar os desafios globais de modo holístico.
Segundo o pensamento do autor, a “ecosofia” deve se vincular às transformações sociais e subjetivas, não se limitando a questões ambientais. Deste modo, a “ecosofia” atua em prol de uma mudança nas práticas sociais, nos modos de vida e na forma como as pessoas se relacionam com o meio ambiente.
Visando facilitar o entendimento sobre este conceito, podemos imaginar uma dada comunidade que decida em conjunto criar uma horta comunitária. Trata-se de uma iniciativa que agrega questões ambientais, tais como práticas agrícolas sustentáveis, mas também tende a reforçar os laços sociais dentro desta mesma comunidade, exercendo papel significativo na subjetividade dos participantes ao promover uma conexão mais direta com a natureza.
Podemos também falar em uma educação ambiental holística, envolvendo além da transmissão de conhecimentos sobre ecologia, também o questionamento sobre como as escolhas individuais e coletivas interferem com o meio ambiente e influenciam o modo como as pessoas podem se perceber enquanto agentes de mudança.
Também podemos pensar na participação em movimentos pela justiça ambiental, que tenham como bandeiras, além da proteção do meio ambiente, questões sociais, econômicas e sociais vinculadas à distribuição desigual dos impactos ambientais.
No geral, o conceito de “ecosofia” nos traz um modo mais amplo e integrado para lidar com questões ambientais, fazendo reconhecimento das interconexões complexas existentes entre ecologia, sociedade e subjetividade, promovendo uma relação mais harmoniosa entre as pessoas, a sociedade e o meio ambiente.
Outro importante conceito presente na filosofia de Guattari é o de “esquizoanálise”, pelo qual entende que psicanálise tradicional se encontra limitada por uma abordagem individualista e pautada na doença mental. A esquizoanálise busca superar as limitações contidas na psicanálise, focando nas relações sociais e políticas presentes no inconsciente, bem como, nas estruturas coletivas presentes na formação do sujeito.
O conceito de “esquizoanálise” foi desenvolvido conjuntamente com o filósofo Deleuze, se apresentando como uma análise crítica direcionada a teoria e prática da psicanálise com base na obra de Freud e Lacan. Por meio de tal conceito são questionadas as estruturas e categorias presentes na psicanálise tradicional. Por tal análise é colocado o foco na multiplicidade e na dinâmica do desejo.
Por meio da elaboração do conceito de “esquizoanálise” é proposto uma reinterpretação do inconsciente e do desejo, tal como presente na psicanálise desenvolvida a época. Há aqui uma busca para desestabilizar as estruturas da psicanálise tradicional (Freud, Lacan), considerando o desejo como sendo uma força produtiva e libertadora. Guattari e Deleuze colocam a ênfase na multiplicidade, na criação e nas linhas de fuga em oposição à fixação em estruturas presentes no assim chamado complexo de Édipo.
O conceito de “esquizoanálise” foi desenvolvido por Guattari em parceria com Deleuze, em particular nas obras “O anti-Édipo”, 1972, e “Mil Platôs”, 1980, vindo a influenciar diversas áreas do saber, tais como a psicanálise, a psicologia, a filosofia e a teoria social. Na origem do desenvolvimento deste conceito temos a psicanálise e a participação de Guattari no grupo de Lacan. Trata-se de uma abordagem inovadora que busca explorar os aspectos coletivos e sociais da subjetividade, enquanto que a psicanálise se atém na análise individual do inconsciente.
A “esquizoanálise” possui alguns princípios básicos, tais como: múltiplas linhas de fuga; desejo e máquinas desejantes; multiplicidade de identidades.
Enquanto a psicanálise busca explorar e entender os conflitos individuais que o sujeito apresenta durante seu tratamento, a esquizoanálise busca explorar as múltiplas linhas de fuga, ou, dizendo de outro modo, as formas usadas pelas pessoas para escapar de categorias pré-determinadas pela sociedade na qual vivem. As “linhas de fuga” mostram-se como sendo caminhos alternativos usados pelas pessoas para saírem dos caminhos convencionais dados pela sociedade, no tocante a compreensão e vivência de suas próprias vidas. Como exemplo de uma “linha de fuga”, podemos pensar em um adolescente proveniente de uma família de médicos já a algumas gerações, resolva romper com a tradição familiar e seguir uma carreira artística, seja voltada para o teatro, música, pintura, artes plásticas, ou outro ramo qualquer, rompendo com a expectativa social.
A esquizoanálise também se relaciona com o conceito de desejo e máquinas desejantes, destacando o desejo como sendo uma força central na formação da subjetividade. O desejo é expresso e produzido por meio de máquinas desejantes. Aqui entra tudo que possa fazer a pessoa sentir como estando viva e conectada com o mundo ao seu redor, como, por exemplo, a arte, a música, a escrita. Como exemplo podemos imaginar um adulto jovem cuja paixão seja a prática do skatismo, expressando seu desejo por meio desta prática.
A esquizoanálise não pensa identidades como sendo fixas, trabalhando a ideia de multiplicidade de identidades que uma mesma pessoa possa ter. A esquizoanálise entende que as pessoas não possuem uma identidade única e estável e sim que são formadas por diferentes “eus” em distintos contextos. Pensemos no exemplo de um adolescente, este pode simultaneamente, ter distintos “eus” em contextos diferentes, sendo ao mesmo tempo um estudante, um irmão, um filho, um atleta, um artista, etc., cada qual representando uma face diferente de uma mesma identidade, a sua.
Deste modo, a esquizoanálise defende um tratamento mais amplo e coletivo visando entender a subjetividade, dando destaque a diversidade, ao desejo e a busca por caminhos não convencionais enquanto elementos fundamentais para a estruturação daquilo que somos.
Outro importante conceito desenvolvido conjuntamente com Deleuze, em particular na obra “Mil Platôs” é o de “rizoma”, pelo qual os autores entendem uma rede de relações não lineares e também não hierárquicas, dando destaque a multiplicidade e a conectividade. Como exemplo e metáfora pode-se falar em uma árvore, onde temos as raízes, o caule, os galhos e as folhas. No rizoma não há uma estrutura central (caule) ou linear com conexões fixas entre as partes (raízes - tronco – galhos – folhas / frutos). No lugar da metáfora da árvore, o rizoma se apresenta como sendo uma rede horizontal (e não vertical), não centralizada (não há um centro de onde possam partir todas as conexões) e na qual todas as diversas conexões existentes possuem o mesmo grau de importância. O conceito de “rizoma” se opõe à ideia de uma estrutura linear e hierárquica. Esta visão descentralizadora teve influência não somente na filosofia, mas também na teoria cultural e na organização social.
Outro conceito introduzido por Guattari e Deleuze é o de “máquinas desejantes”, que surge na obra “O anti-Édipo”. Aqui destaca-se como o desejo é produzido e reproduzido em diferentes contextos. As máquinas desejantes representam as complexas interações entre o desejo e a realidade.
O conceito de “máquinas desejantes” enfatiza a natureza produtiva do desejo. O desejo não se vincula apenas a objetos específicos, sendo uma força que produz interações sociais e é também produzida, por meio de interações sociais complexas. Este conceito de “máquinas desejantes” reflete a dinâmica em constante mudança entre o sujeito e o seu ambiente.
Também presente no pensamento filosófico de Guattari, temos sua abordagem diante da macropolítica (ao nível social e global) e da micropolítica (ao nível individual e local). Segundo o pensamento do autor, torna-se necessário conectar as experiências pessoais com as dinâmicas sociais e políticas mais amplas.
No tocante às instituições terapêuticas hospitalares, Guattari entendia ser importante integrar a abordagem psicanalítica adotada na instituição com questões sociais e políticas, buscando, deste modo, transformar o ambiente institucional psiquiátrico.
Guattari militou pela transformação da instituição psiquiátrica, fazendo parte integrante do movimento denominado “anti-psiquiatria”. Segundo o pensamento do autor, as práticas terapêuticas ultrapassam os limites físicos da instituição psiquiátrica ou do consultório do psicoterapeuta. Defende a criação de espaços terapêuticos que sejam mais abertos, permitindo que o processo terapêutico possa fazer uso de uma maior interação social e expressão criativa.
Também desenvolveu o conceito de “três ecologias”, se referindo a junção de três dimensões para análise e intervenção: individual, social e ambiental. Buscou demonstrar as interconexões existentes entre a ecologia mental, a social e a ambiental, dentro de uma abordagem holística.
As três ecologias (mental, social e ambiental) propostas por Guattari ampliam o conceito de ecologia para além do meio ambiente presente na natureza ao incorporar novas dimensões (mental, social). Temos aqui um destaque e ênfase na interdependência entre as três esferas (mental, social e ambiental), buscando uma abordagem integrada para melhor atuar diante dos desafios atuais.
Também explorou os diferentes territórios do desejo presentes em distintos contextos culturais no seu livro “Cartografias do desejo”, publicado em coautoria com Suely Rolnik, onde aborda as interconexões existentes entre a psicanálise, a política e a arte.
Em outro insight interessante, temos o conceito de “ritornelo”, que foi desenvolvido por Guattari em colaboração com Deleuze, em particular na obra “Mil Platôs”. A origem deste conceito pode ser encontrada na música, fazendo referência ao “refrão” ou a uma determinada linha melódica que seja repetida em dada composição musical. Guattari e Deleuze ultrapassam as fronteiras da música, utilizando do conceito de “ritornelo” de modo amplo, para descrever fenômenos sociais complexos. Por meio do conceito de “ritornelo” os autores explicam como os territórios são construídos e como os sujeitos se relacionam com o espaço e a subjetividade.
O conceito de “ritornelo” é pelos autores, associado a construção de territórios, sejam estes físicos ou subjetivos. Podemos encontrar este conceito em uma melodia, em um gesto, em uma palavra ou qualquer outro elemento que seja repetido e pela sua repetição possa ajudar a demarcar e organizar um determinado território, levando-se em consideração a subjetividade.
O conceito de “ritornelo” atua como um porto seguro que permita a sensação de segurança e estabilidade durante transições, estando associado a ideia de “linha de fuga”. O sujeito pode se movimentar em direção a novas experiências ou territórios, tendo ao seu lado a sensação de segurança e estabilidade proporcionada pelo “ritornelo”. O “ritornelo” mostra-se como uma estratégia para melhor se relacionar com a complexidade presente na realidade, sendo uma resposta criativa ao caos e à multiplicidade, proporcionando a criação de padrões reconhecíveis e zonas de estabilidade em meio ao caos. Podemos encontrar a presença do “ritornelo” na música, na linguagem, nos gestos, nos rituais, nas estruturas sociais, não se limitando a uma forma específica, mas se apresentando como sendo uma estratégia geral de organização e expressão cuja manifestação pode se dar em distintos domínios e aplicações sociais. Por meio do conceito de “ritornelo”, podemos obter uma melhor compreensão da relação dinâmica entre estabilidade e movimento, ordem e caos, na construção dos territórios individuais e coletivos. Este conceito realça a contribuição da repetição criativa e da familiaridade com algo, no decorrer da exploração de áreas desconhecidas para o sujeito, bem como, no processo de negociação com a complexidade presente na realidade ao redor do sujeito.
Para melhor entender o conceito de “ritornelo”, pensemos em alguns exemplos básicos de sua aplicação. Ao nos lembrarmos de uma música da qual gostamos, em geral lembramos mais facilmente do refrão da música, ou seja, da parte que mais se repete. Este refrão pode ser entendido como um “ritornelo”. O refrão da música nos traz uma sensação de familiaridade, sendo um ponto de referência na canção, que ao se destacar na música, ajuda a melhor estrutura-la. Também podemos pensar como exemplo, nos rituais diários que fazemos no nosso dia-a-dia, seja em casa ou no ambiente de trabalho, ou mesmo nas nossas atividades de lazer e interativas. Ao chegar em casa, proveniente do trabalho ou da escola, o sujeito pode muito bem ter um dado ritual, como ligar o som para escutar determinado estilo musical, ou ligar a tv no seu canal favorito, preparar algo para comer e beber, verificar o telefone celular para saber se há novas mensagens nas redes sociais, etc. Este ritual inocente presente na nossa rotina diária, em praticamente tudo o que fazemos repetidamente, funciona como um “ritornelo”, oferecendo para nós um momento de reconhecimento, familiaridade, estabilidade e conforto diante das inúmeras mudanças diárias as quais estamos sujeitos no nosso dia-a-dia. A repetição de pontos de referência expressa pelo conceito de “ritornelo”, nos ajuda na criação de pontos de referência que proporcionem organização e compreensão da realidade na qual vivemos.
Dentro os conceitos elaborados por Guatarri e Deleuze, temos também o de “transversalidade”, este conceito de uma abordagem transversal foi desenvolvido em particular nas obras “O anti-Édipo” e “Mil Platôs”. Por meio de tal conceito os autores exploram ideias que transcendam as fronteiras disciplinares adotadas convencionalmente. Há aqui uma busca por uma compreensão que seja mais ampla e interconectada por uma variedade de fenômenos, expandindo os limites das fronteiras tradicionais existentes entre filosofia, psicanálise e teoria social.
Por meio do conceito de “transversalidade” os autores fazem referência a ideia de se criar conexões horizontais e interdisciplinares que possam atravessar distintas áreas do saber, bem como, perpassar por práticas sociais e experiências individuais. Por meio de tal conceito, busca-se superar os limites tradicionais e desenvolver a interconexão entre distintos campos do conhecimento.
No lugar de se optar por seguir estruturas verticais e hierárquicas, abordando questões isoladamente em disciplinas específicas, pelo conceito de “transversalidade” busca-se a criação de conexões horizontais. É incentivada a colaboração entre as distintas áreas do saber, de modo a se obter a integração dos saberes. É um reconhecimento de que problemas complexos requerem abordagens multifacetadas. Com tal conceito busca-se a quebra de barreiras entre disciplinas acadêmicas e o desenvolvimento de um diálogo entre as distintas formas de saber.
Por meio do conceito de “transversalidade busca-se transpor fronteiras rígidas entre disciplinas, indo além das divisões e convenções acadêmicas sobre o campo específico de cada área do conhecimento. Busca-se a criação de uma rede de conexões que possa abarcar as ciências, as humanidades, as artes e também outras áreas do conhecimento humano.
O conceito de “transversalidade” possui aplicação prática em distintos contextos, não se limitando ao ambiente acadêmico. Podemos fazer uso de tal conceito nas questões sociais, políticas e culturais. Busca-se por meio de tal conceito o enriquecimento da compreensão sobre problemas diversos, bem como a facilitação da resolução de tais problemas em distintas situações onde possa ser aplicado.
Como exemplo, podemos pensar em uma turma de ensino médio na qual os alunos sejam incentivados pelos professores na elaboração de um projeto interdisciplinar. Por exemplo, sobre o clima e mudanças climáticas, dentre outras temáticas possíveis. No lugar do projeto ficar restrito as aulas referentes as disciplinas de ciências, uma abordagem baseada no conceito de “transversalidade” irá propor a colaboração com outras distintas disciplinas presentes na escola. Pode ser incluído as análises sociais e econômicas resultantes das mudanças climáticas, as possíveis soluções para o problema por meio da tecnologia e design, a evolução histórica da questão, o trabalho matemático com os dados obtidos e uma análise estatística sobre os mesmos, etc.
Em outro exemplo possível sobre “transversalidade”, alunos do ensino médio poderiam ser incentivados na escola para a criação de um clube de estudos sobre as mídias sociais. Caberia aos alunos abordar as implicações tecnológicas vinculadas à informática (TI), as questões éticas vinculadas à filosofia, as questões sociais vinculadas à sociologia, as questões individuais vinculadas à psicologia, às questões históricas, dentre outras abordagens possíveis e associadas a disciplinas correspondentes que estejam na grade curricular.
Por tais exemplos sobre o conceito de “transversalidade” e sua aplicabilidade no uso cotidiano podemos ilustrar como tal conceito pode se dar de modo interdisciplinar, enriquecendo a compreensão de distintas temáticas complexas em sua natureza.
Temos também o conceito de “caosmose”, que apesar de ter sido desenvolvido em parceria com Deleuze, está principalmente associado ao nome de Guattari, a quem é atribuído o termo e suas explorações conceituais. A ênfase dada à contextualização do conceito em um paradigma estético ético são características específicas dadas por Guattari. Neste conceito temos as preocupações com a interdisciplinaridade, bem como, a relação com a filosofia, psicanálise e estética. Trata-se de uma abordagem na qual busca-se de modo inovador compreender as dinâmicas ocorridas a partir da interação entre ordem e caos no universo. O conceito é elaborado principalmente na obra "Caosmose: Um Paradigma Estético Ético", 1992.
No conceito de “caosmose” temos a soma de duas palavras, “caos” e “cosmos”, dando ideia dos processos dinâmicos de transformação que estão presentes na interação entre por um lado elementos caóticos e, por outro lado, elementos que geram ordem no universo.
Por tal conceito, faz-se uma referência à dinâmica constante e criativa que ocorre entre o caos e o cosmos. Para Guattari o caos não atua como um elemento somente destrutivo, mas sim como a fonte de potencial criativo que age interagindo de modo contínuo com as formas de organização presentes no cosmos.
No conceito de “caosmose” temos o destaque a importância da multiplicidade e da singularidade, sendo o caos entendido como sendo uma multiplicidade de possibilidades e o cosmos como representante das formas organizadas e singulares que possam surgir de dentro deste caos.
O conceito de “caosmose” é entendido como sendo um paradigma estético ético, ou seja, as implicações decorridas da interação entre o caos e o cosmos (sua dinâmica), tem implicações estéticas e éticas. A estética se vincula à apreciação da beleza e da expressão, já a ética se mostra nas questões morais e de valor.
Dentro do contexto de “caosmose” a arte e a criatividade têm um papel de destaque. A arte é entendida como sendo uma expressão deste processo dinâmico. Por meio da criatividade artística pode-se capturar e comunicar as transformações constantes ocorridas entre o caos e o cosmos.
Se formos pensar em uma forma de exemplificar de modo mais simples, podemos imaginar uma pintura abstrata. As pinceladas livres e espontâneas representariam o caos, já a composição final obtida com a obra de arte pronta, representa o surgimento da ordem presente no cosmos. Há uma interação dinâmica na relação entre a expressão da liberdade (caos) e o resultado visual final presente na forma da obra de arte (ordem / cosmos), como resultado temos o conceito de “caosmose”.
Outro exemplo de “caosmose” pode ser obtido no ciclo natural da água na natureza. O caos pode ser entendido como sendo a evaporação da água, mas ao caos segue-se a ordem, que irá levar a formação de nuvens, a precipitação de chuvas, a criação de rios, e a chegada final da água nos oceanos, representando este ciclo contínuo a dinâmica natural presente no conceito de “caosmose”.
Também podemos ver a presença do conceito de “caosmose” na improvisação musical. Durante uma improvisação musical os músicos podem inicialmente começarem com um tema caótico no qual distintas possibilidades sonoras podem ser exploradas. No decorrer da apresentação musical, novos elementos surgem e são organizados em harmonias e padrões, deste modo, temos aqui também a interação presente entre o caos inicial e a ordem que se segue, “caosmose”. No conceito de “caosmose” temos o destaque para a relação dinâmica e produtiva entre elementos caóticos e ordenados, que se apresentam nos mais distintos e diferentes contextos.
Temos também o conceito de “desterritorialização” presente em Guattari, desenvolvido em colaboração com Deleuze. Por meio de tal conceito podemos entender a relação dinâmica entre o território (territorialização) e o processo de desvinculação ou transformação deste mesmo território (desterritorialização).
Por meio da ideia de “territorialização” temos uma referência a criação de territórios, que podem ser entendidos como sendo espaços físicos, ou sociais, ou psicológicos. A construção, destes territórios se dá por meio de limites, regras e estruturas, que, por sua vez, atuam de modo a organizar e definir determinada área.
Por meio da ideia de “desterritorialização” temos uma referência ao processo que resulta na dissolução, desorganização e transformação deste território. Este processo envolve a quebra de fronteiras e estruturas já estabelecidas, de modo a permitir a emergência de novas configurações.
Como possíveis exemplos para o conceito de “desterritorialização” temos a migração e o deslocamento de pessoas e populações em dada região. Podemos pensar em uma dada comunidade que tenha sempre vivido em determinado local e que repentinamente seja por algum motivo forçada a mudar para outra região. O território original onde residia estas pessoas é desfeito e novos territórios passam a ser formados, sejam territórios geográficos, sociais, culturais, comerciais ou outros.
Um outro exemplo para “desterritorialização” pode ser encontrado na globalização ou mundialização, onde temos uma desterritorialização cultural. Com a globalização temos a interação entre diversas culturas em uma escala ampla, na qual elementos culturais de uma dada região podem ultrapassar as fronteiras desta região e virem a ocupar espaço em outras regiões e populações, além da cultura na qual tais elementos já são tradicionais no decorrer da história deste povo. A música pop, por exemplo, tende a ultrapassar fronteiras, fazendo com que estilos musicais diferentes surjam em comunidades nas quais não faziam parte de sua tradição local. Deste modo, temos presente no conceito de “desterritorialização” as transformações culturais.
No conceito de “desterritorialização” temos também a desconstrução de normas sociais ocorridas no contexto sociocultural. Um outro exemplo possível ocorre nos movimentos sociais que atuam desafiando normas tradicionais de gênero ou de papéis sociais, destruindo estruturas previamente estabelecidas.
Também temos a presença da “desterritorialização” quando da introdução de novas tecnologias, como, em décadas recentes, a introdução da Internet, dos smartphones e das diversas redes sociais. Estas mudanças tecnológicas atuam desfazendo fronteiras presentes na comunicação e na informação, proporcionando a criação de novos territórios, agora virtuais, e proporcionando a reconfiguração do modo como as pessoas se relacionam e compartilham informações sobre suas vidas.
Este conceito de “desterritorialização” atua como um processo dinâmico que surge e se desenvolve em distintas áreas da vida, tendo impacto em territórios físicos, culturais e sociais. Por meio da compreensão deste conceito temos um instrumento para analisar as mudanças, as inovações e as transformações que ocorram nos distintos territórios, sejam estes físicos, mentais ou sociais.
Um outro conceito importante é o de “singularidade”, desenvolvido por Guattari em parceria com Deleuze, em particular nas obras “O anti-Édipo”, 1972, e “Mil Platôs”, 1980. O conceito de “singularidade” se refere a individualidade única e irredutível de cada ser, fenômeno ou evento. Para os autores, cada entidade é considerada singular, única, diferente de qualquer outra.
O conceito de “singularidade” nos apresenta a resistência à generalização e à categorização. Por meio de tal conceito os autores buscam estudar o que há de único em cada pessoa, situação ou conceito, evitando reduzi-los a categorias predefinidas.
O conceito de “singularidade” se relaciona com outro conceito, “esquizoanálise”. A singularidade mostra-se como por demais importante para o entendimento do desejo e da subjetividade presente na esquizoanálise. Na esquizoanálise temos que o desejo não é universal, mas singular. O desejo tende a resistir a todas as tentativas para sua normalização e padronização.
Como exemplo do conceito de “singularidade” podemos pensar em um pintor contemporâneo. Em cada obra por ele produzida temos a presença de sua expressão artística que possibilita tornar esta obra única, trazendo nela contida a sua visão pessoal, técnica e também suas experiências de vida. Percebemos a singularidade na escolha do material a ser trabalhado, na escolha da técnica, das cores usadas, no modo particular deste fazer suas pinceladas, nos temas escolhidos para serem desenvolvidos artisticamente, na interpretação dada ao mundo pelo artista por meio de sua obra. Dois ou mais artistas podem possuir obras semelhantes ou mesmo se assemelharem entre si na elaboração de sua arte, mas mesmo assim, cada qual é singular, mostra-se como uma expressão única da subjetividade nele presente.
Outro conceito é o de “produção de subjetividade”, desenvolvido por Guattari em parceria com Deleuze e que surgem particularmente nas obras “O anti-Édipo”, 1972, e “Mil Platôs”, 1980. Pelo conceito de “produção de subjetividade” temos que a subjetividade é apresentada como sendo um processo em constante movimento e transformação, e não uma entidade fixa ou estável. A subjetividade é algo que está sendo produzida de modo contínuo, sendo recriada e moldada no decorrer do tempo histórico.
O conceito de “produção de subjetividade” faz interconexão com o desejo e também o poder. O desejo mostra-se como sendo uma força produtiva que abastece a produção da subjetividade. Já o poder tende a influenciar e moldar esta mesma produção de subjetividade, conforme as dinâmicas nele presente.
A produção de subjetividade também se relaciona com as instituições e as estruturas sociais de poder, não ocorrendo de modo isolado. Normas, valores e práticas sociais tendem a proporcionar sua contribuição para a produção de distintos modos de subjetividade, dando forma as identidades individuais e coletivas.
Para exemplificar o conceito de “produção de subjetividade” podemos pensar em adolescentes contemporâneos, mergulhados em uma cultural digital, com forte presença de redes sociais na Internet e do uso de seus aparelhos de smartphones de última geração, participação em jogos online e em diversas plataformas digitais, que produzem e moldam a sua subjetividade. A formação da subjetividade única dentro deste contexto recebe fortes contribuições das expectativas sociais, das dinâmicas das redes sociais e das influências provindas da cultura digital.
Na produção de subjetividade proposta por Guattari e Deleuze temos um rompimento com abordagens tradicionais presentes na psicanálise, ao propor uma perspectiva mais dinâmica e processual para a subjetividade. A ativa participação dos indivíduos na criação de suas identidades surge por meio da ênfase dada a produção. Temos uma resistência a ideias fixas e deterministas presentes nas abordagens da psicologia tradicional.
Outro conceito presente na filosofia deste autor é o de “capitalismo mundial integrado”. Este conceito foi elaborado principalmente por Guattari, mas Deleuze também recebe os créditos por colaborar em sua criação, sendo o mesmo desenvolvido em maior profundidade nas obras “O anti-Édipo”, 1972, e “Mil Platôs”, 1980. Neste conceito temos uma reflexão sobre a atual sociedade contemporânea. Nele temos presente a globalização capitalista, ao se fazer referência à fase avançada do capitalismo que surge com a globalização. Nesta fase de desenvolvimento do capitalismo, as atividades econômicas, políticas e culturais se mostram de modo interconectado e global, havendo uma profunda e ampla integração dos mercados e das relações sociais.
Por meio do conceito de “capitalismo mundial integrado” temos a presença da interconexão de diversos fluxos como sendo a sua principal característica. Temos fluxos financeiros, comerciais, tecnológicos, culturais e outros que atuam além das fronteiras nacionais. No capitalismo mundial integrado temos a fluidez e a velocidade na qual estes fluxos circulam por todo o planeta.
O “capitalismo mundial integrado” oferece também, impacto nas subjetividades, na produção de subjetividade, e não apenas nos setores econômicos e políticos. A integração global nesta fase do capitalismo se relaciona com os modos como as pessoas percebem a si mesmas e se relacionam com a realidade circundante, influenciando-as.
Como exemplo para o conceito de “capitalismo mundial integrado” podemos pensar no grupo de jovens classificados como adolescentes em nossa cultura. Mesmo estando em partes distintas do mundo, muito afastadas entre si, tendem a usar as mesmas marcas, compartilhar as mesmas tendências, usar as mesmas plataformas digitais, debaterem sobre as mesmas questões, havendo a elaboração de uma uniformidade cultural mundial. Deste modo, o capitalismo mundial integrado atua de modo a influenciar a economia, mas também as preferências individuais e coletivas, os comportamentos sociais e a formação de identidade dos jovens em uma escala global. Pelo conceito de “capitalismo mundial integrado” é colocada a ênfase na natureza interconectada e mundial das dinâmicas sociais, econômicas e culturais na atualidade. O impacto se dá não somente no nível macroeconômico, pois, atinge também outras esferas nas vidas e relações entre as pessoas e sociedades, tais como a experiência cotidiana e a produção de subjetividade das pessoas envolvidas no processo.
No decorrer de seu trabalho filosófico, Guattari buscou uma compreensão ampliada sobre as relações existentes entre a subjetividade, a sociedade, a política e o meio ambiente, bem como, desafiou os paradigmas então reinantes, indo ao encontro de uma abordagem transdisciplinar.
PRINCIPAIS OBRAS
1- O anti-Édipo: Capitalismo e esquizofrenia ("L'Anti-Œdipe: Capitalisme et Schizophrénie"), 1972. Em coautoria com Gilles Deleuze.
Trata-se de uma crítica à psicanálise, em especial de Freud e Lacan. Os autores propõem uma abordagem nova que chamam de “esquizoanálise”. Na obra é analisada a relação existente entre o desejo, o poder e a sociedade, em um questionamento sobre as estruturas tradicionais de poder.
2- Kafka: Por uma literatura menor ("Kafka: Pour une littérature mineure"), 1975. Em coautoria com Gilles Deleuze.
Um exame da obra de Franz Kafka dentro da perspectiva de uma literatura menor, mostrando como o trabalho crítico de Kafka reflete as dinâmicas de minorias e oprimidos.
3- O Inconsciente Maquínico: Ensaios de Esquizoanálise ("Machinic Unconscious: Essays in Schizoanalysis"), 1979.
Conjunto de ensaios sobre a temática desenvolvida no livro “O anti-Édipo” e a relação entre máquinas, desejo e subjetividade contido no conceito de “esquizoanálise”.
4- Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia (“Mille Plateaux: Capitalisme et Schizophrénie”), 1980. Em coautoria com Gilles Deleuze.
Uma crítica à hierarquia e à linearidade nas estruturas sociais então presentes, a partir do conceito de “rizoma”. São abordadas questões vinculadas à multiplicidade e a conexão.
O título “Mil Platôs” pode ser traduzido para o português como sendo “mil planaltos”, indicando que existe uma multiplicidade de planaltos ou níveis, em referência à complexidade e à diversidade de conceitos e ideias desenvolvidos nesta obra. O livro teria na sua composição e projeto uma série de “plateaux” ou capítulos, cada um destes tratando de conceitos e temas diferentes, mas conectados por uma lógica não linear. A multiplicidade de planaltos presentes no livro aponta para a variedade de perspectivas possíveis presentes nesta obra, que traz em si a natureza multifacetada e complexa presente nas reflexões sobre a filosofia, a psicanálise e a sociedade.
5- Cartografias do Desejo ("Cartographies schizoanalytiques"), 1986. Coautoria com Suely Rolnik.
Nesta obra são tratadas temáticas relacionadas à psicanálise, arte e política, abordando a relação entre subjetividade e práticas culturais em uma perspectiva transdisciplinar.
6- As três ecologias ("Les Trois Écologies"), 1989.
O autor amplia suas discussões para além da esfera social e psicológica, enfocando inter-relações existentes entre ecologia mental, ecologia social e ecologia ambiental, propondo uma visão mais ampla do conceito “ecologia” que possa incluir as dimensões subjetivas e coletivas da existência.
7- Caosmose: Um Paradigma Estético Ético ("Chaosmosis: An Ethico-Aesthetic Paradigm"), 1992.
O autor trata de questões éticas e estéticas dentro de um mundo complexo e caótico. São discutidas as transformações das práticas éticas e estéticas diante de mudanças sociais, tecnológicas e políticas.
Silvério da Costa Oliveira.
Prof. Dr. Silvério da Costa Oliveira.
Site: www.doutorsilverio.com
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