Por: Silvério da Costa Oliveira.
Georges Sorel
1- Vida
Georges Eugène Sorel (1847-1922) nasceu em Cherbourg, hoje Cherbourg-en-Cotentin, França e falece aos 74 anos de idade em Boulogne-Billancourt, França. É proveniente de uma família de classe média ligada ao comércio. Seu pai era um empresário local. Desde cedo, Sorel demonstrou aptidão para os estudos, o que o levou a se mudar para Paris em 1864, aos 17 anos, para frequentar o Collège Rollin, uma instituição preparatória de prestígio. Em 1865, ingressou na renomada École Polytechnique, onde se formou em engenharia civil. Foi escritor e atuou como teórico do sindicalismo revolucionário de esquerda ou anarco-sindicalismo.
Após concluir os estudos, em 1869, Sorel ingressou como engenheiro no Departamento de Obras Públicas do governo francês, vindo a ocupar o cargo de engenheiro-chefe. Seus primeiros anos de carreira foram marcados por uma série de atribuições em regiões periféricas da França e suas colônias. Ele passou um período em Córsega até 1871, seguido por postos no sul do país, incluindo cidades como Albi, Gap e Draguignan. Entre 1876 e 1879, serviu em Mostaganem, na Argélia, uma experiência que o expôs a realidades coloniais e sociais diversificadas. Seus últimos anos profissionais foram em Perpignan, onde permaneceu até sua aposentadoria precoce em 1892, aos 45 anos, por escolha pessoal e não motivada por circunstâncias externas fora de seu controle. Nesse ano, recebeu a condecoração da Légion d'Honneur por seus serviços. Com uma pensão modesta, Sorel pôde se dedicar integralmente à reflexão intelectual, mudando-se para Boulogne-sur-Seine, nos arredores de Paris, onde viveu com sua companheira, Marie David (nasceu por volta de 1855 e faleceu em 1897), uma mulher de origem operária que exerceu influência significativa em suas visões sociais e pessoais, com quem manteve uma relação estável e não convencional para a época. Quando de seu falecimento, Sorel se viu profundamente afetado e isto o impulsionou ainda mais para o engajamento com questões sociais.
O ponto de virada na vida de Sorel ocorreu por volta dos 40 anos, quando ele começou a se interessar por temas sociais, econômicos e filosóficos, abandonando gradualmente sua visão conservadora-liberal inicial. Influenciado por pensadores como Pierre-Joseph Proudhon, Karl Marx, Giambattista Vico, Henri Bergson e, mais tarde, William James, ele desenvolveu uma abordagem única ao pensamento político. Bergson, em particular, cujas aulas no Collège de France Sorel frequentou, inspirou sua ênfase na intuição e na criatividade humana. Em 1893, ele se declarou publicamente marxista e socialista, contribuindo para jornais e revistas emergentes do movimento, como L’Ère nouvelle e Le Devenir Social. Entre os anos de 1895 e 1897 atuou como editor da revista francesa “Le devenir social”. Nesta época sua proposta era de divulgar o que considerava essencial dentro da teoria marxista.
Participou ativamente dos debates revisionistas iniciados por Eduard Bernstein, questionando dogmas marxistas tradicionais. Durante o Caso Dreyfus, no final da década de 1890, Sorel defendeu o capitão Alfred Dreyfus, alinhando-se com intelectuais progressistas como seu amigo Charles Péguy, embora mais tarde expressasse desilusão com os resultados políticos deste episódio, vendo-a como uma oportunidade perdida para transformação social profunda.
Ao longo da primeira década do século XX, Sorel evoluiu para o sindicalismo revolucionário, rejeitando o parlamentarismo e a democracia representativa como compatíveis com o socialismo verdadeiro. Ele argumentava que o sindicalismo, baseado em sindicatos operários autônomos, era o caminho para a revolução proletária. Suas ideias foram publicadas em periódicos italianos e franceses, como Il Divenire sociale e Mouvement socialiste. Em 1905, começou a publicar por partes o que se tornaria sua obra mais famosa, "Reflexões sobre a Violência", lançada como livro em 1908, ao lado de "As Ilusões do Progresso". Nesses textos, ele defendeu o conceito de "mito" como força mobilizadora das massas, sugerindo que narrativas épicas, como a greve geral, poderiam inspirar ação coletiva sem necessidade de planos racionais detalhados. Ele via a violência proletária não como destruição gratuita, mas como um meio de preservar a divisão de classes e fomentar a moral revolucionária.
Politicamente, Sorel apresentou-se como inconstante e eclético. Entre 1909 e 1910, teve uma breve associação com o grupo monarquista Action Française, de Charles Maurras, embora discordasse de seu nacionalismo exacerbado. Essa colaboração influenciou a criação do Cercle Proudhon, um fórum que unia sindicalistas revolucionários e conservadores radicais. Em 1911, fundou a revista L'Indépendance com colegas como Édouard Berth e Georges Valois, mas desentendimentos, especialmente sobre o nacionalismo, levaram ao seu fim em 1913. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), opôs-se à "União Sagrada" francesa, que unia esquerda e direita contra a Alemanha. Em 1917, saudou a Revolução Russa, elogiando os bolcheviques em artigos para publicações soviéticas e italianas, comparando Lenin a Pedro, o Grande, por sua capacidade de transformação radical. Em seus anos finais, expressou admiração por Benito Mussolini em 1921, vendo nele um gênio político, embora criticasse aspectos do fascismo emergente, como sua desordem. O fascismo italiano deve muito ao trabalho de Sorel, tendo em parte nele se influenciado.
Sorel passou de um realismo científico inicial para um anti-positivismo e proto-pragmatismo. Influenciado por Vico, enfatizou que o conhecimento social surge da ação coletiva, não de leis deterministas. Seus trabalhos exploraram temas variados, desde hidrologia e arquitetura em sua fase inicial até filosofia da ciência, história política e moral. Publicou livros como "Contribuição ao estudo profano da Bíblia", 1889, "Questões de moral", 1900, "A ruína do mundo antigo", 1902, e "Materiais para uma teoria do proletariado", 1919. Sua epistemologia evoluiu para abraçar o pragmatismo americano, culminando em "Da utilidade do Pragmatismo", 1921, onde defendeu uma teoria do conhecimento vinculada à prática.
Sorel deixou um legado polêmico. Suas ideias inspiraram a esquerda radical revolucionária, o fascismo italiano de Benito Mussolini e movimentos sindicalistas. Embora nunca tenha fundado um movimento próprio, sua ênfase no seu conceito de mito, na violência transformadora criativa e em debates sobre ideologia e ação política, apresentam uma contribuição significativa que exerceu profunda influência na formação de movimentos políticos e nas estratégias ainda adotadas hoje, em particular pela esquerda política e seu braço mais violento que faz uso natural da violência em suas manifestações públicas.
2- Ideias e conceitos
Sua obra marcou o pensamento político e social do final do século XIX e início do XX, especialmente por sua abordagem original ao socialismo, sindicalismo revolucionário e filosofia da ação. Suas ideias, caracterizadas por uma combinação de marxismo, anti-positivismo, influências de Proudhon, Bergson e Vico, e mais tarde do Pragmatismo, rejeitavam ortodoxias ideológicas e propunham uma visão dinâmica da transformação social. Georges Sorel teve influência e popularidade na França, Itália e nos EUA. Ele pode ser considerado um marxista heterodoxo que sofreu grande influência de Proudhon, dentre outros. Suas múltiplas influências teóricas o tornaram polêmico e, por vezes, visto como eclético.
Ao se fixar na metáfora da “guerra” para tratar da luta de classes, entende quase de modo literal esta “guerra”, já que não considera producentes ações democráticas e parlamentares (socialismo parlamentar; participação dos socialistas no sistema eleitoral, etc.), buscando ações diretas e violentas. Não se trata aqui, segundo o autor, do uso da “força”, esta ainda instrumento presente em uma dada ordem social na qual uma minoria controla uma maioria, mas sim da “violência”, enquanto meio de destruição completa desta mesma ordem social.
Sorel entende que o desenvolvimento histórico da sociedade não é algo inevitável ou que siga regras determinísticas ou mesmo se atenha a uma providência divina. Segundo Sorel trata-se aqui de um desenvolvimento fruto de uma ação heroica e violenta que busca de modo constante restaurar a civilização da decadência. O ponto crucial sempre se encontra junto à ação criadora humana diante da história, por meio do uso da violência e do sacrifício em busca da conquista de objetivos. Deste modo, ao contrário dos marxistas que entendiam que a marcha natural da história levaria de modo determinístico a uma revolução do proletariado e a criação de uma sociedade comunista, Sorel entendia que era justamente o oposto, ou seja, que a própria revolução, obtida por meios violentos, fará a história avançar. Enquanto Marx e Engels apontam a “cientificidade” presente no comunismo, Sorel recusa esta premissa e se atem ao que entende ser o espontaneísmo da ação política presente nas massas operárias que levaria em algum momento a uma greve geral do proletariado que teria como resultado a abolição definitiva do capitalismo, sem, no entanto, a necessidade disto passar primeiro pela construção de um partido político revolucionário que tenha como meta a condução dos trabalhadores para a tomada do poder do Estado.
Influenciado por Marx, Sorel adotou uma visão materialista da história, mas com nuances próprias. Ele via as transformações sociais como impulsionadas por conflitos econômicos e de classe, mas enfatizava a ação dos trabalhadores e a importância da ação direta, em vez de esperar por determinismos históricos. Em “A Ruína do mundo antigo”, 1902, Sorel analisa o colapso do Império Romano como resultado de mudanças nas relações econômicas, como a crise da agricultura escravista. Ele usa esse exemplo para argumentar que as revoluções contemporâneas dependeriam de ações proletárias conscientes. Aqui entra a discussão efetuada em seu livro “Reflexões sobre a violência”, no sentido em que entende que o processo de evolução social não é determinado por uma dialética, como entenderam Marx e Engels baseados em uma interpretação de Hegel, nem por outro lado fruto de uma evolução natural da sociedade que implique uma necessidade, em verdade, esta evolução social em direção ao socialismo / comunismo deverá ocorrer por meio da violência.
Em vez de buscar uma análise das condições (objetivas e subjetivas) presentes no sistema econômico vigente para obter a sua transformação, busca Sorel uma teoria da ação revolucionária dentro do contexto da luta de classes. Para isto ser obtido não é necessário um partido político e sim a organização sindical. Sorel entende que a mera participação política e representativa nas instituições por parte do proletariado não é eficiente na luta pela transformação social.
Sorel era profundamente cético em relação à democracia representativa, que ele via como uma ferramenta da burguesia para neutralizar o potencial revolucionário do proletariado. Ele acreditava que os parlamentos e partidos socialistas reformistas diluíam a luta de classes, integrando os trabalhadores ao sistema capitalista. Em seus artigos no periódico Mouvement socialiste, Sorel criticava os socialistas franceses, como Jean Jaurès, que defendiam reformas através do parlamento. Ele apontava que a participação eleitoral enfraquecia movimentos como a CGT, desviando a energia dos trabalhadores para negociações com a elite política, como visto nas alianças socialistas durante o Caso Dreyfus.
Inspirado por Giambattista Vico, Sorel via a história como um processo criativo, moldado pelas ações e crenças humanas, em vez de um desenrolar de leis universais. Ele enfatizava a importância das narrativas culturais e dos mitos na construção da realidade social. Em “De Aristóteles a Marx” (compilação de escritos publicada postumamente em 1935), Sorel compara as visões de Vico sobre a história cíclica com as ideias de Marx sobre luta de classes. Ele sugere que os trabalhadores contemporâneos, como os antigos romanos descritos por Vico, criam suas próprias instituições (como sindicatos) para moldar o futuro, em vez de seguir um destino predeterminado.
A evolução que venha a permitir este enfrentamento das camadas proletárias contra o sistema deverá surgir a partir do desenvolvimento da consciência e não meramente de condições econômicas ou políticas. A mobilização do proletariado se daria de modo irracional e não a partir de análises racionais sobre as condições de trabalho e esta consciência coletiva irá se manifestar de modo violento pela força do mito. Seu sindicalismo revolucionário encontra sua base na ação direta das massas operárias.
Ao aderir a um sindicalismo revolucionário adotou como estratégia que a revolução não ocorreria como os teóricos marxistas apontavam, ou seja, por meio de uma tomada do Estado pelo proletariado e a subsequente criação de uma ditadura do proletariado. No lugar desta linha de pensamento, entendia Sorel que deveria ocorrer a completa eliminação de toda a estrutura do Estado, caso isto não ocorresse, após a revolução os trabalhadores teriam simplesmente trocado o comando de um grupo de privilegiados para outro, sem nada efetivamente conseguir de mudança real.
Sorel rejeitava a ideia positivista de progresso linear, comum entre liberais e socialistas reformistas de sua época. Ele argumentava que a crença no progresso inevitável era uma ilusão burguesa que desmobilizava os trabalhadores, promovendo a aceitação passiva do status quo. Em vez disso, ele enfatizava a necessidade de ação direta e ruptura com as estruturas existentes. Em “As ilusões do progresso”, 1908, Sorel critica pensadores como Auguste Comte, que viam a história como um avanço contínuo rumo à perfeição social. Ele apontava que o progresso técnico, como a industrialização, frequentemente aprofundava a exploração dos trabalhadores, como nas condições desumanas das fábricas têxteis francesas do final do século XIX, em vez de libertá-los.
Sorel é mais conhecido por sua defesa do sindicalismo revolucionário, uma corrente que via os sindicatos operários como o motor da revolução proletária, em oposição ao socialismo parlamentar ou reformista. Ele acreditava que os sindicatos, organizados de forma autônoma pelos trabalhadores, eram o espaço ideal para desenvolver uma consciência de classe e promover a luta direta contra o capitalismo. Para Sorel, o sindicalismo deveria rejeitar a integração no sistema político burguês, como partidos socialistas que buscavam reformas graduais. Em “Reflexões sobre a violência”, Sorel argumenta que os sindicatos devem organizar greves e ações diretas para desafiar a ordem capitalista. Ele via as greves não apenas como demandas econômicas, mas como atos de afirmação da identidade proletária, capazes de criar uma "moral revolucionária".
Importante é o conceito de “mito revolucionário” desenvolvido por Sorel, segundo o qual este se apresenta como um conjunto de imagens percebidas instantaneamente, intuições, capazes de evocar com a força do instinto o sentimento de luta. Neste contexto de “mito” encaixa Sorel o marxismo. A ideia de “mito” em Sorel está vinculada a algo a semelhança de uma crença irracional e religiosa na ocorrência de alguma coisa, como uma greve geral ou mesmo uma revolução socialista. Esta crença presente no mito tende a impelir em direção à ação e não meramente a uma contemplação ou análise racional dos fatos e do que poderá ocorrer futuramente. O “mito” para Sorel é algo que é aceito por um grupo social como sendo verdadeiro, as pessoas acreditam nele e atuam de acordo com tal crença, independente deste ser realmente verdadeiro ou falso. Neste tocante, qualquer coisa (teoria, religião, etc.) que faça as pessoas assim se comportarem deve ser entendida como sendo um “mito”, como tal é o caso do marxismo e também da religião cristã em suas várias denominações (católicos, protestantes, etc.).
O conceito de mito é talvez a contribuição mais original de Sorel ao pensamento político. Ele definia o mito como uma narrativa poderosa que mobiliza as massas para a ação, independentemente de sua veracidade ou viabilidade prática. Para Sorel, o que importava não era se o mito era "verdadeiro" ou "falso", mas sua capacidade de inspirar crenças profundas e motivar sacrifícios coletivos. Ele via o mito como uma força intuitiva, quase poética, que transcendia a racionalidade positivista e dava sentido à luta social. Embora o mito da greve geral seja o exemplo mais conhecido em sua obra, Sorel aplicava o conceito a outras narrativas, como o marxismo e o cristianismo primitivo. Ele argumentava que essas ideologias funcionavam como mitos porque ofereciam visões épicas de transformação (a revolução socialista ou a salvação espiritual) que mobilizavam seguidores a agir com fervor, mesmo enfrentando adversidades extremas. O mito, para Sorel, era uma "imagem de batalha" que unificava as massas e dava propósito à luta, independentemente de sua realização literal.
Em “Reflexões sobre a violência”, Sorel apresenta a greve geral como o mito central do sindicalismo revolucionário. Ele não a via como um plano concreto a ser executado, mas como uma visão que inspirava os trabalhadores a se unirem contra o capitalismo. Segundo Sorel, narrativas épicas, como a ideia de uma greve geral, não precisam ser racionalmente organizadas ou mesmo factíveis de serem postas em práticas com êxito, mas funcionam como visões inspiradoras que direcionam as massas para a ação. O mito, para Sorel, não é uma utopia detalhada, mas uma imagem poderosa que dá sentido à luta e motiva sacrifícios coletivos. Por exemplo, ele apontava como as greves gerais na França e na Itália no início do século XX, mesmo que não derrubassem o capitalismo, fortaleciam a solidariedade operária e desafiavam a hegemonia burguesa. A crença em uma causa maior, verdadeira ou não, pode impulsionar ações coletivas, alinhando-se com a visão de Sorel.
Sorel desenvolveu os conceitos de “violência” e “mito” como pilares centrais de sua filosofia política, particularmente em sua obra mais influente, “Reflexões sobre a violência”. Sorel defende e exalta a violência na luta de classes. Por meio da violência é possível manter viva a luta de classes, presente entre burguesia e proletariado, realçando esta divisão e simultaneamente empreendendo uma reforma moral do proletariado. Mostra-se contrário à conciliação e paz social, defendendo uma atitude de guerra onde se faça presente a luta de classes. Segundo Sorel, o proletariado não busca por concessões, mas sim pela ruína completa de seus adversários, os burgueses. Para Sorel a violência é entendida como sendo um instrumento libertador das massas proletárias, que são a maioria, de sua exploração por uma minoria, seja esta a burguesia ou uma minoria político-partidária.
Sorel entendia a sociedade burguesa como decadente e buscava o fim do capitalismo por meio da revolução do proletariado, o que permitiria a superação dos valores decadentes e a criação de novos valores morais heroicos provenientes da ação vigorosa do proletariado. Sorel não rejeita os avanços científicos ou industriais, mas sim o controle dos mesmos pela classe operária por meio de uma revolução onde temos presente a violência na destruição de valores decadentes e da corrupção moral burguesa. Sorel busca por tal meio uma renovação moral e espiritual, inspirada em sua fé cristã (católica), que se encontra com elementos de fé, tais como o ascetismo presente nas ordens monásticas, a aceitação e busca da pobreza e de uma vida simples. Isto é o que mais se aproximaria de sua visão de uma futura sociedade humana socialista.
Sorel via a violência proletária como um mecanismo essencial para a reformulação da sociedade, mas sua concepção era distinta de uma apologia à destruição indiscriminada. Para ele, a violência era um ato criativo e moral, uma expressão da vitalidade do proletariado contra a opressão capitalista. Ele a definia como uma força que preservava a divisão de classes, impedindo que os trabalhadores fossem assimilados pela ideologia burguesa. A violência, nesse sentido, não buscava apenas conquistar direitos materiais, mas afirmar a identidade e a dignidade da classe trabalhadora, criando uma "moral revolucionária" que rejeitava os valores individualistas e conciliatórios do capitalismo. Sorel defendeu a violência como um instrumento legítimo da luta de classes, mas com uma interpretação específica: a violência proletária não era destruição gratuita, mas uma forma de afirmar a identidade e a moral dos trabalhadores contra a opressão capitalista. Ele a via como um meio de manter a divisão entre classes, evitando a assimilação do proletariado pela burguesia, e como uma expressão de vitalidade revolucionária.
Sorel distinguia a violência proletária da "força" estatal, que ele considerava opressiva e destinada a manter a ordem burguesa. A violência proletária, por outro lado, era espontânea, coletiva e orientada por um propósito ético: romper com a submissão e inspirar a ação revolucionária. Ele argumentava que, sem a ameaça da violência, os trabalhadores seriam cooptados por reformas paliativas ou pela democracia parlamentar, que ele via como armadilhas para neutralizar o potencial revolucionário.
Em “Reflexões sobre a violência”, Sorel cita as ações diretas dos trabalhadores, como sabotagens ou confrontos com forças patronais, como formas de violência criativa. Ele contrastava essa violência com a repressão estatal, que considerava opressiva. Um exemplo prático seria sua análise das greves violentas na França, como os confrontos entre trabalhadores e polícia durante as greves ferroviárias de 1910, que ele via como demonstrações de resistência proletária. Um exemplo histórico que ele admirava era o movimento dos sindicatos franceses no início do século XX, como a Confédération Générale du Travail (CGT), que organizava greves gerais com forte caráter combativo, em que trabalhadores enfrentaram a polícia e sabotaram infraestruturas. Ele via esses atos como manifestações de resistência que fortaleciam a solidariedade operária e desafiavam a hegemonia capitalista. Por exemplo, a destruição de trilhos ou máquinas durante essas greves não era apenas um protesto econômico, mas um símbolo de recusa à exploração.
Sorel acreditava que o proletariado deveria desenvolver uma moral própria, distinta dos valores burgueses, baseada na solidariedade, na coragem e na luta. Essa moral seria cultivada nas práticas sindicais e na resistência coletiva, rejeitando tanto o individualismo liberal quanto o conformismo promovido por instituições estatais ou religiosas. Em “Materiais para uma teoria do proletariado”, 1919, Sorel destaca o papel das associações operárias em criar uma ética de classe. Ele citava os sindicatos italianos do início do século XX, que organizavam cooperativas e greves, como exemplos de espaços onde os trabalhadores desenvolviam valores de lealdade e sacrifício coletivo, contrastando com a ética competitiva do capitalismo.
Nos últimos anos de sua vida, Sorel abraçou elementos do Pragmatismo, inspirado por William James, e rejeitou o Positivismo determinista. Ele argumentava que o conhecimento não é uma verdade absoluta, mas uma construção derivada da ação prática e da experiência coletiva. Essa visão influenciou sua epistemologia, que via a história e a sociedade como produtos da criatividade humana, não de leis universais. Em “Da utilidade do Pragmatismo”, 1921, Sorel analisa como as ideias revolucionárias surgem da prática, não de teorias abstratas. Ele compara o desenvolvimento do socialismo às inovações tecnológicas, como a criação de máquinas a vapor, que emergiram de experimentações práticas, sugerindo que a luta de classes também se molda por ações concretas, como greves espontâneas.
Sorel é conhecido por sua trajetória intelectual eclética, flertando com diferentes correntes, do socialismo ao nacionalismo, sem se fixar em nenhuma. Ele via méritos em ideias que promovessem ação e ruptura, independentemente de sua origem ideológica, o que o levou a influenciar tanto a esquerda revolucionária quanto a direita radical. Entre 1909 e 1910, Sorel colaborou com a Action Française, de Charles Maurras, atraído por sua crítica à democracia burguesa, mas rompeu devido a divergências sobre o nacionalismo. Mais tarde, em 1921, ele elogiou Mussolini por sua capacidade de mobilizar massas, mas criticou a desordem do fascismo. Esses movimentos refletem sua busca por forças dinâmicas, como a Revolução Russa de 1917, que ele admirava pela liderança de Lenin.
Para Sorel, violência e mito eram interdependentes. O mito da greve geral, por exemplo, inspirava a violência proletária, que, por sua vez, reforçava a narrativa mítica ao demonstrar a força e a determinação dos trabalhadores. Essa interação criava um ciclo de mobilização: o mito dava propósito à violência, e a violência tornava o mito tangível.
3- Influências contemporâneas
As ideias de Sorel sobre a violência ecoam em movimentos de esquerda atuais que recorrem a táticas disruptivas para desafiar regimes capitalistas ou governos conservadores. Embora muitos desses grupos não citem Sorel diretamente, sua ênfase na ação direta e na ruptura com a ordem estabelecida ressoa com sua filosofia. Esses movimentos frequentemente usam táticas como ocupações, barricadas ou enfrentamentos com forças policiais para desestabilizar sistemas percebidos como opressivos, refletindo a visão de Sorel de que a violência pode ser um catalisador para despertar a consciência de classe e mobilizar as massas. A visão de Sorel sobre a violência é controversa, pois, embora ele a defendesse, não detalhava os limites éticos da mesma, o que levanta questões sobre até onde a violência poderia ser justificada sem degenerar em caos ou repressão.
A influência de Sorel é evidente, mesmo que indireta, em movimentos de esquerda que combinam narrativas míticas com ações violentas ou disruptivas. Grupos como os Black Blocs, que emergiram em protestos antiglobalização na década de 1990, utilizam táticas violentas (como confrontos com a polícia ou destruição de propriedades) inspirados por visões de ruptura sistêmica, ecoando a ideia de Sorel de que a violência é um ato de afirmação contra a opressão. Da mesma forma, narrativas como a luta por justiça social, contra a desigualdade global, contra mudanças climáticas, etc. funcionam como mitos, mobilizando ativistas a ações que desafiam a ordem estabelecida, mesmo sem um plano de atuação ou comprovação das teses defendidas pelo grupo.
No cenário contemporâneo, essa influência é mais perceptível em grupos como a Antifa e o Black Lives Matter (BLM), onde a violência surge como resposta a estruturas percebidas como opressivas (capitalismo, racismo sistêmico ou fascismo). A Antifa (abreviação de "antifascista"), rede descentralizada de ativistas radicais de esquerda, incorpora elementos sorelianos por meio de táticas de confronto direto contra símbolos percebidos como de extrema-direita, polícia e instituições capitalistas. Sorel via a violência como um "mito mobilizador" que une as massas em atos de resistência, similar ao que ocorre na Antifa, onde confrontos físicos (como arremesso de objetos em forças policiais ou vandalismo de propriedades associadas ao "fascismo") são justificados como defesa ética contra a opressão estatal. A influência de Sorel aparece na doutrina da "diversidade de táticas", que permite ações violentas ao lado de protestos pacíficos, ecoando sua distinção entre violência criativa (proletária) e força repressiva (estatal). Estudos sobre anarquismo contemporâneo ligam isso diretamente a Sorel, vendo suas ideias como base teórica para práticas como o Black Bloc, táticas de anonimato em massa durante protestos, usadas para sabotar infraestruturas vistas como opressivas. Por exemplo, Sorel argumentava que a violência proletária "aniquila" o Estado sem buscar tomá-lo, um eco em ações antifa que visam deslegitimar a autoridade policial em vez de reformá-la.
Alguns exemplos podem ser obtidos e citados a partir do contexto presente neste início de século. Protestos do G20 em Hamburgo (2017): Grupos antifa, organizados em Black Blocs, incendiaram veículos e ergueram barricadas contra forças de segurança, causando danos estimados em milhões de euros. Essa violência foi interpretada como resistência transnacional ao capitalismo global, alinhada à visão soreliana de ações que inspiram medo na burguesia e fortalecem a solidariedade operária. Jornadas de Junho no Brasil (2013): O surgimento de Black Blocs em protestos contra aumentos de tarifas e corrupção estatal envolveu vandalismo e confrontos, transformando manifestações em eventos anarquistas que suspendiam a "legitimidade da ordem legal". Ativistas viam isso como "propaganda pelo ato" (um conceito anarquista próximo ao mito soreliano da greve geral), expondo a violência estatal e mobilizando massas. Protestos nos EUA pós-2020: Durante os levantes contra a brutalidade policial, a Antifa foi acusada de transformar protestos antes pacíficos, com ações como a destruição de comissariados e estátuas confederadas. Analistas libertários ligam isso ao sindicalismo soreliano, onde a violência contra instituições capitalistas (como bancos ou propriedades privadas) serve para desestabilizar o sistema, mesmo que resulte em caos. O BLM - Black Lives Matter, movimento global contra o racismo sistêmico e a violência policial, tem uma relação mais ambígua com o conceito soreliano. Oficialmente, o BLM enfatiza protestos não violentos e reformas (como desfinanciamento da polícia), mas elementos radicais dentro do movimento (especialmente em interseções com anarquistas ou anticapitalistas) adotam táticas disruptivas que ecoam a violência como afirmação de dignidade coletiva. Sorel, influenciado por Proudhon, via a violência como preservadora da divisão de classes; analogamente, no BLM, atos de revolta contra o "capitalismo racial" servem para rejeitar a assimilação pacífica à ordem liberal. Levantes de 2020 nos EUA: Após o assassinato de George Floyd, protestos do BLM evoluíram em cidades como Portland e Minneapolis, com incêndios em comissariados e saques a lojas de luxo. Grupos como Antifa se uniram, transformando ações em "sindicalismo marxista", termo usado para descrever violência contra instituições capitalistas, como a queima de veículos da polícia ou destruição de propriedades corporativas. Isso pode ser visto como eco de Sorel: uma "greve geral" urbana que expõe contradições raciais e econômicas, inspirando solidariedade global. Interseções com Antifa: Em Portland (2020-2021), blocos autônomos do BLM-Antifa ocuparam zonas autônomas e confrontaram a Guarda Nacional, justificando a violência como defesa contra "fascismo policial". Analistas conectam isso à herança soreliana via diversidade de táticas, onde a violência é um "motor para o socialismo" contra o Estado opressor. No BLM, porém, a influência é diluída: líderes centrais condenam a violência, mas facções radicais (como o capítulo de Portland) adotam posturas mais sorelianas, vendo confrontos como essenciais para "manter a oposição fundamental" ao racismo capitalista.
A influência de Sorel em Antifa e BLM é mais genealógica que direta (transmitida via anarquismo, marxismo herético e teorias de ação direta), promovendo a violência como ferramenta de empoderamento dos marginalizados contra estruturas opressivas. Isso explica o uso de táticas disruptivas em protestos globais, de Hamburgo a Minneapolis, onde o confronto não visa vitórias eleitorais, mas rupturas simbólicas. A influência aparece na ideia de que a violência não é mero vandalismo, mas uma resposta moral à opressão histórica, similar à "violência proletária" de Sorel que canaliza "sentimentos nobres" da classe oprimida. Embora o BLM não cite Sorel, sua retórica de "queimar tudo" (em contextos de revolta) reflete o mito soreliano: narrativas de libertação (como a abolição do racismo estrutural) mobilizam massas para ações radicais, independentemente de viabilidade imediata. Críticos argumentam que essa "violência criativa" perpetua ciclos de destruição sem transformação sustentável, facilitada por líderes locais relutantes em reprimir. Neste começo de século XXI, com polarização crescente, o legado de Sorel nos lembra que a violência política pode alienar aliados e fortalecer narrativas não fundamentadas, levando ao caos e ao oposto de um autogoverno libertário, cedendo espaço a ditaturas cruéis e sem qualquer liberdade de expressão, com total repressão em nome do mito, seja este o de uma sociedade libertária, do comunismo ou do socialismo, dentre outros.
4- ALGUMAS DAS PRINCIPAIS OBRAS DE GEORGES SOREL
1- Contribution à l’étude profane de la Bible. Título traduzido: Contribuição ao estudo profano da Bíblia. Data de publicação: 1889.
Nesta obra inicial, Sorel explora a Bíblia sob uma perspectiva histórica e sociológica, desvinculada de interpretações teológicas tradicionais. Ele analisa o contexto social e cultural dos textos bíblicos, utilizando métodos históricos para entender como as narrativas moldaram a moral e a organização social. O livro reflete sua formação inicial como engenheiro e pensador racional, antes de sua guinada ao socialismo.
2- Le Procès de Socrate: Examen critique des thèses socratiques. Título traduzido: O processo de Sócrates: Exame crítico das teses socráticas. Data de publicação: 1889.
Sorel examina o julgamento e as ideias de Sócrates, questionando a idealização do filósofo na tradição ocidental. Ele analisa o impacto das teses socráticas na sociedade ateniense, argumentando que Sócrates desafiou normas estabelecidas, mas também provocou tensões que culminaram em sua condenação. A obra revela o interesse precoce de Sorel pela filosofia e pela história das ideias.
3- Essai sur l’Église et l’État. Título traduzido: Ensaio sobre a Igreja e o Estado. Data de publicação: 1900.
Este ensaio investiga as relações históricas entre instituições religiosas e poder político, com foco na tensão entre autoridade espiritual e secular. Sorel analisa como a Igreja influenciou estruturas políticas na Europa, especialmente na França, e questiona o papel do clero na sociedade moderna e contemporânea. O texto reflete sua transição para questões sociais e políticas mais amplas.
4- La Ruine du monde antique: Conception matérialiste de l’histoire. Título traduzido: A ruína do mundo antigo: Concepção materialista da história. Data de publicação: 1902.
Nesta obra, Sorel adota uma perspectiva materialista para explicar o declínio do Império Romano, enfatizando fatores econômicos e sociais em vez de narrativas morais ou religiosas. Ele explora como mudanças nas estruturas produtivas e nas relações de classe contribuíram para o colapso, antecipando sua adesão ao marxismo e ao estudo das dinâmicas históricas.
5- Introduction à l’économie moderne. Título traduzido: Introdução à economia moderna. Data de publicação: 1903.
Sorel apresenta uma análise crítica das teorias econômicas de seu tempo, combinando influências marxistas com reflexões sobre o impacto do capitalismo industrial. O livro discute a organização do trabalho, a exploração econômica e o papel das classes trabalhadoras, servindo como base para suas ideias posteriores sobre o sindicalismo revolucionário.
6- Les Illusions du progrès. Título traduzido: As ilusões do progresso. Data de publicação: 1908.
Neste texto, Sorel critica a crença otimista no progresso linear propagada por pensadores liberais e positivistas. Ele argumenta que a ideia de progresso contínuo mascara desigualdades sociais e serve aos interesses da burguesia, propondo que apenas ações coletivas radicais podem gerar mudanças significativas. A obra reflete seu ceticismo em relação às ideologias dominantes.
7- Réflexions sur la violence. Título traduzido: Reflexões sobre a violência. Data de publicação: 1908.
Considerada sua obra mais influente, este livro defende o sindicalismo revolucionário e o conceito de "mito" como força mobilizadora. Sorel argumenta que a greve geral, enquanto mito, inspira a ação proletária, e que a violência operária é um meio de afirmar a identidade de classe contra a opressão capitalista. O texto combina filosofia, sociologia e política.
8- Matériaux d’une théorie du prolétariat. Título traduzido: Materiais para uma teoria do proletariado. Data de publicação: 1919.
Nesta coleção de ensaios, Sorel reflete sobre o papel do proletariado na transformação social, enfatizando a autonomia dos trabalhadores e o potencial revolucionário dos sindicatos. Ele discute a moral proletária e a necessidade de uma cultura de classe distinta, consolidando suas ideias sobre o sindicalismo e a ação direta.
9- De l’Utilité du pragmatisme. Título traduzido: Da utilidade do Pragmatismo. Data de publicação: 1921.
Em sua última grande obra, Sorel explora o Pragmatismo, influenciado por William James, como uma abordagem para compreender o conhecimento e a ação social. Ele defende que o conhecimento é construído pela prática coletiva, rejeitando visões positivistas e enfatizando a criatividade humana. O livro marca sua evolução para uma epistemologia mais flexível.
10- D’Aristote à Marx (L’ancienne et la nouvelle métaphysique). Título traduzido: De Aristóteles a Marx (A antiga e a nova metafísica). Data de publicação: Escrito em 1910-1911, publicado postumamente em 1935.
Este trabalho analisa a evolução do pensamento filosófico de Aristóteles a Marx, com ênfase nas concepções metafísicas que moldam as visões de mundo. Sorel conecta ideias clássicas às modernas, destacando como o materialismo histórico de Marx oferece uma nova compreensão da realidade social e da luta de classes.
Silvério da Costa Oliveira.
Prof. Dr. Silvério da Costa Oliveira.
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