Por: Silvério da Costa Oliveira.
George Berkeley (1685-1753) nasceu em 12 de março de 1685 na Irlanda, mas de família de origem inglesa, e veio a falecer em 14 de janeiro de 1753, então com 67 anos de idade. Suas principais obras são: “Tratado sobre os princípios do entendimento humano”, de 1710, “Três diálogos entre Hylas e Philonous”, de 1713, “De motu”, de 1721, “Alciphron”, de 1732, “O analista”, de 1734, “Siris”, de 1744. Destes tem recebido maior destaque as duas primeiras, as quais abordam exatamente a mesma temática, sendo a segunda uma exposição em formato de diálogo de sua tese numa tentativa de fazê-la compreensível mesmo a um não iniciado a filosofia. Quanto ao livro “Siris”, este tem se mostrado polêmico no tocante as interpretações recebidas pelos diversos comentadores da obra e nela se encontra forte presença de filósofos da antiguidade até Plotino.
Filósofo, mas também homem religioso, atuou como bispo da Igreja Anglicana e teve sincera preocupação com o crescimento do ateísmo e deísmo em sua época. Acreditava que o materialismo então presente em diversas teorias filosóficas desde Descartes, passando por Malebranche, Locke, Boyle e Newton era o grande responsável pelo afastamento de Deus e da vida espiritual de modo que imaginou que destruindo o conceito de matéria e mesmo de substância estaria destruindo as bases do ateísmo. Berkeley há de negar a matéria, sua filosofia, inclusive, é por ele chamada de “imaterialismo”, numa clara referência a oposição que este fará em seu sistema a existência da matéria. Acredita ele que sua filosofia não se afasta da crença popular, pois as pessoas do povo tenderiam a pensar o mundo da mesma forma.
Podemos dizer de um modo geral que as principais teses metafísicas defendidas pela filosofia de Berkeley são, respectivamente: 1- negação da ideia de substância, 2- negação da matéria, daí o imaterialismo, 3- negação das ideias abstratas, 4- negação das qualidades sensoriais primárias de Locke, todas as qualidades seriam secundárias, 5- afirmação de que “ser é ser percebido”, 6- existência somente de ideias passivas, percebidas, e espíritos (mente, entendimento, alma) ativos, percebedores.
Berkeley nega que seja possível a existência de ideias abstratas (todas as ideias são relacionadas a objetos particulares) e também nega a possibilidade da existência de ideias inatas (todas as ideias são adquiridas pela experiência). Se pensarmos no dualismo de Descartes, Berkeley há de negar a res extensa e afirmar a existência somente da res cogitans, negando, no entanto que haja ideias inatas e afirmando que todo o nosso conhecimento provém da experiência, de onde vem o seu empirismo.
Há quem fale aqui em um monismo em Berkeley, já que este nega a res extensa e aceita somente a res cogitans de Descartes, ou seja, que tudo é pensamento, que tudo é percepção de algo em nossas mentes, no entanto, me parece precipitada tal conclusão pois a mesma tenderia a aproximar o sistema de Berkeley da obra de Spinoza e são coisas completamente diferentes. Muito se fala no dualismo cartesiano, se bem que na verdade haveriam três substâncias e não duas, uma vez que o Deus criador cristão é deixado de fora. Quando Berkeley nega a existência de uma das substâncias proposta por Descartes, ou seja, a matéria, tenderia a cair por tal raciocínio em um monismo, mas esta interpretação particularmente me causa estranheza diante da leitura da obra de Berkeley e do estudo de sua biografia. Lembremos que a motivação inicial de Berkeley é combater o ceticismo e defender a religião cristã. Ele acredita que destruindo a ideia de matéria e de sustância há de conseguir tal intento, pois, segundo ele o materialismo estaria na base das doutrinas que se opõe a fé cristã. Tudo é o que percebemos, mas parece que existem muitas coisas a serem percebidas, diversos percebedores (espíritos, alma, mente, intelecto) além de um espírito maior que é Deus, afinal, ele propõe que o mundo é tal qual uma pessoa do povo imagina que este seja e que seu sistema não se afasta do modo como as pessoas acreditam conhecer seja lá o que for. Apesar de se poder atribuir direcionamentos e conclusões dado um pensamento exposto em uma obra filosófica, cabe o cuidado de não deturpar a intenção original do autor ao colocar algo que mesmo que possível de ser coerente com sua teoria, poderia ser negado pelo autor se vivo ainda fosse e consultado sobre o assunto.
Locke nos fala de qualidades sensoriais primárias, as quais estariam presentes aos objetos independente do percebedor e de qualidades sensoriais secundárias que não estão presentes ao objeto e sim ao percebedor, já para Berkeley não existem as qualidades sensoriais primárias, pois, só o que existe são as qualidades sensoriais secundárias, pois, tudo o que existe é fruto da percepção que temos da realidade. Tudo o que sabemos não passa de ideias em nossa mente, não há algo outro em nosso entendimento do que ideias oriundas inicialmente de nossas percepções e experiência.
A causa real das percepções que temos não está na matéria que não existe e mesmo se esta substância material existisse, seria incapaz de atuar no nosso espírito, também não está no nosso próprio espírito, pois somos incapazes de tal criação, logo, a origem de todas as ideias que temos em decorrência de nossa percepção da realidade se encontra em Deus, um espírito superior infinito.
A matéria não existe e as coisas sensíveis que formam o nosso conhecimento provém unicamente de nossa percepção, todo o nosso conhecimento é formado por ideias obtidas pela percepção, não há aqui espaço para algo mais, para qualquer coisa outra que não seja algo por nós percebido. Uma coisa só existe na medida em que percebe ou é percebida, não há como falar em algo que possa existir sem obedecer a esta simples regra.
Para Berkeley “ser” é “ser percebido” e somente o que garante que algo exista é a percepção que temos deste algo. Quando de nossa ausência, a garantia de que algo que antes havíamos percebido continua a existir é dada por Deus, que continua a perceber este algo. Deixemos claro, no entanto, que o sistema de Berkeley não é constituído a partir da ideia de Deus e pela prova de sua existência temos a comprovação da existência do mundo e sim pelo contrário disto, pois, sabemos que Deus existe quando percebemos o mundo a nossa volta e ao perceber este mundo torna-se evidente a existência de Deus. O sistema de Berkeley independe de Deus, este só possui um papel local e específico de corrigir algumas lacunas no sistema, como no caso de como algo se sustentaria na ausência de alguém que pudesse naquele momento percebe-lo.
Atenção que “ser é ser percebido” não é algo universal, pois, tal categorização cabe para as coisas ou os entes, mas estes se subdividem em dois, as ideias e os espíritos, já que enquanto uns são percebidos, os outros percebem. Aos primeiros cabe a total passividade, já aos segundos cabe a atividade. Nosso próprio espírito, nosso eu, é conhecido imediatamente por reflexão.
Cabe aqui uma ressalva para um detalhe importante quanto ao pensamento de Berkeley no tocante a afirmação de que ser é ser percebido, pois, uma árvore ou qualquer outra coisa em um parque distante só poderá existir se percebida. Se Berkeley colocasse em dúvida a existência ou não da matéria árvore na ausência de alguém para percebe-la teríamos nele um cético, no entanto isto não ocorre na medida em que Berkeley nega a existência de qualquer coisa que não seja percebida ao negar toda a matéria e aceita somente a percepção. Ao negar a matéria ele afirma a não existência de algo, portanto, escapa da dúvida que o caracterizaria como cético e o aproxima de uma forma particular de realismo, na medida que todos percebem a realidade tal como ela é, não havendo um substrato não conhecido por trás de tal percepção. Motivo este pelo qual Berkeley se propõe a combater com sua filosofia o ceticismo e afirma que seu sistema filosófico vê o mundo da mesma forma que as pessoas comuns. Lembremos que a matéria negada por Berkeley é a matéria na concepção dos filósofos e não da pessoa comum.
Esta foi com certeza uma ideia genial de Berkeley, pois, enquanto homem religioso, bispo da Igreja Anglicana, e profundamente preocupado com o afastamento das pessoas da espiritualidade e religiosidade devido, segundo sua opinião, ao materialismo então predominante nas diversas teorias em voga em sua época, entendeu que o melhor meio de atacar e vencer de uma vez o ateísmo e o afastamento da religião tradicional baseada na revelação, na fé e na espiritualidade seria negar a matéria, comprovar a inexistência da própria matéria. Não havendo matéria não haveria sentido em ser materialista. Como a matéria acaba sendo um conceito vago defendido pelos filósofos, como também o conceito de substância, do qual nada podemos dizer para qualifica-lo, sendo algo do qual possamos supor a existência, mas que não possamos ter acesso direto ao mesmo, então porque mantê-lo? Para o humano comum do povo o que existe é basicamente o que este percebe pelos seus sentidos e nada mais há o que questionar. Berkeley há de dizer exatamente isto, que em sua filosofia nada muda para o humano comum, pois a vida continua sendo como este acredita ser, fruto de sua percepção. Afinal, tudo o que existe para nós são ideias em nosso entendimento e não temos como saber nada além das ideias em nossa mente obtidas pelo processo de percepção e experiência.
Se fôssemos personagens em um livro (como no “O mundo de Sofia”, 1991, de Jostein Gaarder) ou em um filme no cinema (como na trilogia “Matrix”, 1999, “Reloaded”, 2003, “Revolutions”, 2003, “Animatrix”, 2003) que pudéssemos ganhar consciência de sermos parte de uma obra de ficção escrita e produzida por alguém, isto em nada afetaria a percepção que temos da realidade, nem as experiências pelas quais passaríamos, pois, seríamos reais em nosso mundo mesmo que este só existisse dentro de um determinado contexto e toda a matéria a nossa volta não passasse de letras e frases impressas em um papel ou bits e bytes proporcionados por impulsos elétricos ou pela imagem gravada na celulose de um filme. Se pegarmos carona com Woody Allen em “The purple rose of cairo”, de 1985, poderíamos imaginar que a personagem Cecília, interpretada por Mia Farrow, não está em verdade afastada sequer de nossa própria realidade ao se encontrar com a personagem Tom Baxter, interpretado por Jeff Daniels, quando este sai do filme para com ela se encontrar. Afinal, se estamos na mente de alguém, mesmo que este alguém para nós seja Deus, o que impede de haver mais de um nível de realidade ou mesmo que não haja materialidade alguma apesar de vivenciarmos em nossas experiências a percepção de muitas coisas que nos proporcionam todas as ideias que possuímos em nosso entendimento e de estarmos sujeitos a todas as regras e leis universais da natureza de nosso universo, no qual vivemos, fazemos parte e é o único que conhecemos e o conhecemos unicamente nas ideias que possuímos e nada mais. Eis aí a grande originalidade de Berkeley, uma ideia brilhante dentro do contexto e interesse por ele vivido. A matéria não existe e sua existência, ou não, é indiferente para nós humanos, pois, tudo o que sabemos e a realidade na qual vivemos são em última instância ideias, somente ideias, provenientes da nossa percepção, provenientes de nossas experiências.
Silvério da Costa Oliveira.
Prof. Dr. Silvério da Costa Oliveira.
Site: www.doutorsilverio.com
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