Por: Silvério da Costa Oliveira.
A esquerda política é uma religião sem deus
A Esquerda política, em sua base marxista-leninista, ou mesmo com seus desenvolvimentos subsequentes, como a Escola de Frankfurt e outros movimentos que deram continuidade e desenvolvimento a este pensamento político, apresenta analogias e semelhanças com uma religião messiânica, ou mais especificamente com o Gnosticismo, que no século II d.C. foi considerado uma heresia cristã, entendimento este que se manteve até o final do século XVIII, só começando a mudar a partir do século XIX, quando os estudiosos passaram a entender o Gnosticismo como uma religião, e bem mais antiga que o cristianismo.
O Gnosticismo foi tido como uma heresia cristã, e como tal foi combatido no início do cristianismo pelos padres apologistas, mas foi bem mais que isto, tratava-se de uma religião mais antiga que o cristianismo e que trazia diversas influências culturais, inclusive mesclando temas religiosos orientais com a filosofia grega.
A história registra que não existe um único gnosticismo, não existe uma única gnose, e sim uma multiplicidade de discursos que na sua pluralidade tentam por meio do conhecimento, entender o cosmos em toda a sua amplitude. Neste tocante, analogamente podemos dizer que não há uma única esquerda, uma única forma de socialismo ou comunismo, e sim uma multiplicidade de discursos que na sua pluralidade tentam por meio do conhecimento, entender a sociedade em toda a sua amplitude, visando destruir as atuais estruturas e transformar esta sociedade.
A esquerda política, o marxismo-leninismo, o socialismo e comunismo, podem ser entendidos como faces de um mesmo movimento, uma religião messiânica, uma religião sem deus, que foi assim criticada e condenada por vários papas católicos, por ser contrária e incompatível com a doutrina religiosa cristã. Com relação ao comunismo, o papa Pio IX, em 1846, na encíclica “Qui pluribus”, já o condenava. Também o papa Leão XIII, em 1878, na encíclica “Quod Apostolici muneris”, e o papa Pio XI, em 1931, na encíclica “Quadragesimo anno”, e em 1937, na encíclica “Divini Redemptoris”. O papa João Paulo II também exerceu fortes críticas ao comunismo e aos regimes comunistas durante o seu papado.
Fica claro que não é possível ser Católico Apostólico Romano e comunista ao mesmo tempo, aliás, ao analisar a fundo a doutrina comunista, fica evidente não ser possível ser cristão e comunista simultaneamente. O comunismo se apresenta tal qual uma religião, mas uma religião sem deus, é a defesa do ateísmo, a negação da existência de deus.
Podemos ser levados ao engano ao acreditar que política e religião são dois mundos distintos, na verdade não é bem assim. Ao estudarmos o assunto fica evidente uma ponte entre este movimento político e o fenômeno da religiosidade. Em suas origens, a esquerda política se mostra culturalmente como algo de religioso. Sua origem se pauta nas antigas heresias cristãs, que, aliás, faz com que a mesma se oponha frontalmente às Igrejas cristãs, suas rivais religiosas na busca por novos fiéis.
O comportamento do militante de esquerda, bem como a estrutura das organizações políticas que tem a esquerda como base, em particular a leitura das obras de Marx, podem encontrar uma origem em algo bem mais antigo, em algo já tido como uma heresia cristã, mas que hoje em dia entendemos que foi, na verdade, uma religião independente. Penso que há fortes semelhanças entre a esquerda política e o Gnosticismo e, por meio de tal, podemos buscar as origens religiosas presentes na esquerda política, seja na sua estrutura ou na mentalidade de seus militantes.
Para os gnósticos havia um conhecimento superior e místico destinado aos iniciados. O mundo que nos cerca foi criado por um deus imperfeito, o demiurgo, e o humano se encontrava preso neste mundo e em seu corpo, sua salvação só ocorreria por meio do conhecimento, a gnose.
A doutrina de esquerda também vê o mundo ao nosso redor como algo imperfeito e que a salvação não se dá pela crença em um deus e sim por um conhecimento dado somente aos iniciados. Este conhecimento lhe proporcionará se libertar deste mundo. Há toda uma atitude do militante que enxerga este mundo como um lugar estranho e mesmo mal. Há uma sensação que se assemelha a uma atitude religiosa e mística que o coloca existencialmente de frente com a angústia de se sentir preso em um lugar terrível. O militante de esquerda enxerga este mundo como algo imperfeito, lugar de injustiças e de opressão de uma classe por outra. Trata-se de um mundo imperfeito que precisa ser substituído por um outro mundo, este perfeito, justo e livre.
Para os antigos gnósticos o mundo material é algo mal, a matéria é um elemento mal, daí a necessidade de evitar reproduzir a matéria, de evitar de ter filhos. A matéria aprisiona a alma e a procriação é a perpetuação desta prisão. A família, o casamento e filhos é algo a ser evitado. A sexualidade não é algo bom e o mesmo pode ser dito sobre a existência de dois sexos, pois, é pela junção dos mesmos que se geram filhos, que se reproduz a matéria e perpetua a prisão da alma nesta matéria.
O mundo ao nosso redor, os prazeres e benesses que dele podemos retirar, é entendido como um obstáculo a ser superado para se chegar a uma dada meta por ambos movimentos. Os Gnósticos entendem o mundo como essencialmente mal, devendo evitar reproduzir a matéria, já para os pensadores da esquerda política temos uma crítica à sociedade capitalista consumista e a alienação presente nas camadas sociais.
O humano (sua alma ou espírito) é bom, o mal se encontra na matéria. São todas as estruturas sociais e políticas presentes neste mundo que são ruins, pois, tudo que é matéria é ruim, somente o espírito no interior deste humano é bom.
O militante de esquerda, à semelhança dos antigos gnósticos, tem como imagem de si ser um dos eleitos, detentor de um conhecimento que o diferencia dos demais. Por querer mudar o mundo e acabar com as injustiças aqui presentes, entende ser alguém bom e puro, mesmo que seus métodos não o sejam. O militante está acima de qualquer regra moral ou legal em sua luta por tornar este mundo em algo melhor.
A doutrina de esquerda busca não o paraíso pós morte e sim a transformação deste mundo em um futuro paraíso, onde teremos a igualdade entre todos como se fossem irmãos, a ausência de crimes, a paz entre as pessoas e as nações, abundância de bens para atender as necessidades das pessoas, e, claro está, obtenção da felicidade por todos. Não se trata, no entanto, de um paraíso espiritual e sim de um paraíso terreno e material, a doutrina é materialista.
A militância de esquerda atua de modo messiânico tentando levar a mensagem na qual acreditam piamente a todos, rompendo com as ilusões deste mundo, visando transformar ou mesmo destruir tudo de mal que a matéria gerou. Tal comportamento da militância pode se mostrar de modo fanático, mesmo envolvendo o uso da força, como no caso, a revolução do proletariado e a ditadura do proletariado.
Tanto no Gnosticismo, como também na Esquerda política, podemos observar uma crítica e questionamento da ordem e da autoridade estabelecidas. Para os primeiros cristãos, o Gnosticismo questionava a autoridade religiosa e as estruturas que estavam se formando na Igreja. Os gnósticos questionavam a autoridade da Igreja Cristã. Já no tocante à esquerda política, esta questiona criticamente o sistema capitalista, questiona a autoridade do sistema social e econômico capitalista, bem como, da existência de uma sociedade de classes, buscando a destruição e transformação da mesma em uma sociedade comunista, sem classes.
A busca por transformação e libertação está presente em ambos movimentos. Para os gnósticos trata-se da libertação da prisão do corpo (matéria), já para a esquerda política trata-se da libertação social das desigualdades e contradições.
A tomada de consciência por meio do conhecimento está também presente em ambos movimentos. O conhecimento ou gnosis é altamente valorizado pelos gnósticos, do mesmo modo que a conscientização das classes oprimidas sobre a sua situação e seu potencial revolucionário de mudança presente na leitura de Marx, ou, do potencial revolucionário contido nas contradições sociais que geram grupos opressores e oprimidos dentro da sociedade, segundo alguns membros da Escola de Frankfurt.
Enquanto os gnósticos buscavam um tipo de igualdade espiritual, por meio do conhecimento e entendendo ser a matéria algo de maligno, os adeptos da esquerda política buscam uma igualdade social e econômica.
Em ambos movimentos temos uma busca por uma situação de perfeição, nos gnósticos temos a busca pela união com uma divindade superior, já na esquerda política temos a busca por uma sociedade sem classes, justa e igualitária.
Em ambos movimentos temos a valorização de um conhecimento obtido pelos iniciados, conhecimento este que traz um tipo de salvação, diferente da salvação proporcionada pelo cristianismo, que nos fala em um mundo transcendente e na salvação em relação ao pecado. O conhecimento (gnosis) desempenha um papel central tanto no gnosticismo, como também no pensamento político de esquerda. No Gnosticismo o conhecimento está associado à salvação, sendo este capaz de libertar o iniciado das restrições contidas na matéria e no mundo material, permitindo-o ter uma união com o divino, alcançando um estágio superior de existência espiritual. Os iniciados que possuem este conhecimento são vistos pelos demais como estando mais próximos da divindade. Trata-se de conhecimentos secretos transmitidos por ensinamentos ou revelações aos iniciados, havendo uma hierarquia no tocante à posse deste conhecimento espiritual. Já no pensamento político de esquerda temos que a ideia de conscientização desempenha um papel semelhante ao da gnosis. A conscientização pode ser entendida como a obtenção de um conhecimento crítico sobre as estruturas sociais e econômicas, sobre as desigualdades, e sobre as injustiças presentes na sociedade. Este conhecimento é transmitido aos iniciados por meio da educação, da discussão e do ativismo político, proporcionando uma forma de iluminação que permita as pessoas enxergarem as reais estruturas de poder ocultas, bem como, agir em prol da desconstrução desta sociedade injusta e opressora e da construção de uma nova sociedade. Em ambos os casos, a posse do conhecimento é vista como uma forma de capacitação e libertação. Tanto os gnósticos quanto os militantes de esquerda acreditam que o conhecimento revelado ou a conscientização é o caminho para a transformação pessoal e social. No entanto, as metas finais são diferentes: os gnósticos buscam a salvação espiritual e a união com o divino, enquanto os militantes de esquerda buscam a justiça social e a igualdade.
No fundo, há o entendimento por parte dos militantes de esquerda que não é Jesus Cristo que irá salvar as pessoas, mas sim a esquerda organizada e presente na sociedade civil laica por meio de sindicatos, partidos e ONGs. Líderes religiosos são entendidos como rivais pelo monopólio político dos pobres e são tidos como estimuladores da alienação social. Neste entendimento por parte de alguns grupos de militantes, caberia á esquerda resgatar estas pessoas da manipulação religiosa. Estes militantes ignoram completamente a história da Igreja, seja a Católica ou a Protestante. Desconhecem que há algum grau de independência, debate e discordâncias internas. Em regra, ninguém segue cegamente o padre ou o pastor, as pessoas são capazes de pensar criticamente, e não são uma mera caricatura de novela de alguma rede de televisão.
Em essência, a doutrina comunista é uma religião e seus militantes são devotos de um credo religioso, mas trata-se de uma religião diferente, pois é uma religião sem deus e onde as recompensas por um bom comportamento não são dadas após a morte para a alma ou o espírito da pessoa que falece, as recompensas pelo bom comportamento militante são dadas para as gerações futuras, para os descendentes dos fiéis do momento presente. A redenção se dá não por ter uma vida digna e santa vindo a ocupar um lugar no paraíso, e sim por ter conseguido em vida antecipar a revolução comunista e a sociedade sem classes, o paraíso na terra. Também uma diferença quanto ao paraíso pós morte, pois este lugar maravilhoso do qual iremos usufruir após nossa morte muda de lugar, o paraíso agora é algo que deva ser construído aqui, para os vivos usufruírem. Não há deus e não há vida após a morte, somente o que há é o que ajudamos a construir aqui na Terra, o que contribuímos para a antecipação da vinda do paraíso comunista para a nossa sociedade. O Bem e o Mal também mudam de significado e subverte a moral e ética cristã. O Bem é tudo que possa antecipar a revolução comunista e a sociedade sem classes, já o mal é tudo que possa retardar a vinda deste paraíso que será a sociedade comunista e sem classes. Nisto se encaixam todas as demais noções, sendo tudo relativizado, pois, não existe uma verdade absoluta. Mentiras, assassinatos, roubos, desvio de dinheiro, tudo é relativo em relação ao que possa gerar, não há uma verdade absolutizante. É verdadeiro o que é bom para a revolução, do mesmo modo será ético, moral e válido o que puder antecipar a vinda desta sociedade sem classes, da sociedade comunista.
Silvério da Costa Oliveira.
Prof. Dr. Silvério da Costa Oliveira.
Site: www.doutorsilverio.com
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