Por: Silvério da Costa Oliveira.
Ser e fazer
Ser e fazer, eis a questão. Na verdade, poderíamos seguir por outro caminho acrescentando aqui um outro verbo, o “ter”. Na vida, a ordem correta para se obter qualquer coisa é e sempre foi e será: “ser”, “fazer” e “ter”, apesar de erroneamente muitos acreditarem que a ordem seja a inversa e aí nada conseguem de fato em suas vidas. Mas não será sobre esta temática que falaremos aqui e sim sobre somente o “fazer”, este verbo tão importante. Iremos abordar um fenômeno que ocorre em nossa sociedade rasa e vazia, que é dar méritos a quem de fato não os merece.
Antigamente você era alguém por ter feito algo, agora você é alguém mesmo sem nada fazer. Para se fazer algo bem feito é preciso primeiramente sermos algo e não o seu oposto. Fazer só meramente por fazer, sem estar vinculado ao que se faz em muito se aproxima de um comportamento doentio e desligado de nós mesmos.
Se a pessoa faz algo de louvável ou importante que seja, é normal e esperado ter o devido reconhecimento pelos seus méritos, obter boa fama, status e mesmo o reconhecimento social por parte de sua comunidade, isto, claro está, levando-se em conta que seja algo de positivo, construtivo, valorativo para a própria pessoa e para o seu grupo social. Infelizmente isto mudou. Nem sempre as glórias vão para quem fez algo, na medida em que se dão todas as glórias para quem nada fez, vazio de conteúdo, que nada possa contribuir para a sociedade da qual faz parte. Penso que seria interessante e mesmo correto que fossemos valorizados pelas nossas próprias conquistas, por fazer algo de positivo, mas o que vemos hoje em dia não é isto, ou pelo menos nem sempre é assim. Trata-se aqui da obtenção de uma fama barata que descarta o “fazer”.
A análise sóbria deste pensamento à luz dos fatos que vivenciamos nos traz uma realidade por vezes sombria. Parece que estamos vivendo uma distopia, na qual temos uma completa inversão de valores. Se pensarmos naquelas antigas balanças de feirante, ou como vemos na estátua da justiça, parece que a mesma está desequilibrada e não pesa corretamente, como se tivesse sido reprogramada para uma nova realidade.
Basta pegarmos um livro qualquer de história para verificarmos que não faz tanto tempo assim, ainda se precisava fazer alguma coisa de útil e significativo socialmente para que a pessoa fosse de fato reconhecida como sendo “alguém”, mas isto tudo mudou. Antigamente conseguir angariar a consideração e respeito do grupo social ao qual se pertencia, ser alguém positivamente famoso por ter feito algo de grandioso, tendia a exigir da pessoa muito suor, esforço e dedicação, pois, se esperava uma contribuição real e de valor para o grupo social. Se a pessoa fosse engenheiro, poderia projetar uma ponte importante em um local distante e de difícil acesso, se fosse trabalhador poderia atuar na construção da mesma, se fosse escritor poderia escrever um romance épico sobre a construção desta ponte, se fosse médico ou enfermeiro poderia atuar no grupo avançado cuidando dos feridos no transcorrer da construção desta ponte, todos contribuindo para a comunidade, todos fazendo algo de útil e com reflexo na história, daí o reconhecimento pelo trabalho executado, uma consequência natural dado o esforço exigido para se fazer algo bem feito.
Parece que em alguma curva da história algo mudou, parece que a lógica deu uma pirueta como se artista de circo fosse, algo como um triplo salto mortal e sem rede de proteção, sobre as cataratas de Niagara Falls. O que de fato aconteceu? Erramos historicamente em algum lugar?
Quantas celebridades no rol dos famosos há cuja única conquista parece ser meramente existir. É a fama pela fama. Se é famoso porque se é famoso. Estranho, não? Claro que programas de tv chamados de reality shows tem sua culpa, redes sociais que destacam unicamente uma imagem momentânea ou frase curta curiosa, bizarra ou engraçada, também tem sua culpa, mas não é só isto. Mesmo antes já havia este fenômeno esdrúxulo.
Diante de uma foto ou vídeo em dada rede social, as pessoas não mais se perguntam quem é este ou estes na foto? o que ele ou eles fizeram? Ao que tudo indica, o que vale é a imagem perfeita e toda retocada para assim o parecer. O que vale é o pensamento profundo que em poucas linhas diz tudo, sem nada de fato dizer. O “fazer” algo de fato parece que realmente saiu em definitivo da moda, sendo algo trabalhoso, cansativo e ultrapassado.
Como era trabalhoso antes, e que bom que não é mais preciso “fazer” algo para “ser” algo. Havia muitas necessidades que tinham de ser atendidas, dentre as quais acordar cedo e começar bem o dia parecia estar sempre presente, mas não só isto, pois, havia também aquela coisa horrível de ter de aprender algo novo, o que demonstrava o quanto de fato não sabíamos. E para aprender algo novo era comum errar muito antes de acertar, e quem de fato gosta de errar? Tinha de repetir inúmeras vezes a mesma coisa, treinar e treinar, para só então, depois de muito antiquado esforço, acertar e continuar acertando. Era de fato algo muito difícil e que levava tempo, dedicação e muito trabalho, além de ser incerto. Tudo bem que não era um jogo de azar, mas não havia garantia alguma de que de fato iríamos conseguir acertar afinal de contas. Depois de todo este esforço, nenhuma garantia de glória ao final.
Quem sabe alguém passe toda a sua vida trabalhando em algo realmente significativo para o avanço da sociedade, algo realmente revolucionário, no entanto, por maior que seja a sua conquista, talvez um outro alguém consiga com um mero vídeo gravado de 15 míseros segundos fazendo alguma palhaçada ou se auto ridicularizando, muito maior atenção social, pois, ao viralizar teremos em um único dia o que o outro demorou toda sua vida, esforço e carreira para honestamente obter. Seria este um infeliz retrato de uma realidade macabra que marca nosso momento histórico social?
Pensemos nos influencers, seu trabalho é influenciar, claro está, mas a questão que podemos colocar é: Influenciar para o que afinal de contas? Como deve ser estimulante para o desenvolvimento espiritual, emocional e cognitivo o aprendizado de dancinhas, pequenas frases motivacionais ou a mera observação de fotos ou pequenos vídeos que retratam o luxo social que pode ser por alguns alcançado em nossa sociedade. Perdão, mas onde se coloca o “fazer” algo em tudo isto?
A sociedade parece estar nos ensinando que nada mais é preciso “fazer” e que de fato nada devemos “fazer”. Afinal, “fazer” é algo démodé (fora de moda). Seja fotografado ou faça um vídeo de poucos segundos e seja famoso, esta é a nova estratégia.
Quando pensamos que o “fazer” é deixado de lado e que as pessoas são instruídas pelas mídias a “ser” sem a necessidade de “fazer” algo primeiro, pensamos que a primeira e assustadora consequência que surge é a total superficialidade pessoal e social. Passamos a viver em uma realidade sem verdadeiro brilho, onde um superficial verniz esconde uma realidade muito diversa da que se observa.
Mas, afinal de contas, porque deveríamos mesmo correr o risco de “fazer” algo e poder fracassar? “Fazer” é algo ruim, pois, envolve muitos riscos, além da dedicação necessária. Após a grande descoberta social de que podemos simplesmente descartar o “fazer” e obter nossa justa fama pelos cinco árduos minutos de nossas vidas ali investidos na criação, por exemplo, de um belo e cativante meme, passamos a viver uma nova e grandiosa era que se descortina a nossa frente. Claro, há de se reconhecer que esta fama barata possa ser efêmera, mas, afinal de contas, quem hoje se importa com isto? Se hoje obtenho sucesso e fama com este meme, foto ou vídeo curtíssimo, amanhã haverá outro para ocupar o meu lugar e o eterno ciclo continua. Alguns irão pensar, e veja, eu disse “pensar”, que isto é muito melhor que obter o reconhecimento após muita luta e esforço para “fazer” (e eis o fatídico verbo ultrapassado aqui de novo) algo de verdade. Porque tentar “fazer” algo e acabar ficando à margem da grande fama, lutando por meras migalhas sociais de reconhecimento fora das grandes mídias? O que interessa não é mais a qualidade de sua contribuição social, mas qual o engajamento que poderá ter em alguma mídia qualquer.
Pena que algumas pessoas teimam em ser rebeldes e negar este belo paraíso. Afinal, “fazer” algo é demonstrar total rebeldia nos dias de hoje. Gritar que nem louco em uma festa barulhenta quando ninguém lhe escuta e ninguém está nem aí para você, isto é o mesmo que insistir teimosamente, obsessivamente, nas reais conquistas, no esforço próprio, em apresentar alguma contribuição social que dê significado a sua passagem por este mundo, a sua inteira vida.
Vivamos o vazio. Afinal, a fama atual é frívola e fugaz, tão rápido vem, já vai embora sem nada deixar, como se de fato nunca ali estivesse estado. Diante da ausência do “fazer”, cabe perguntar onde se encontra o nosso “ser” e qual o real valor do “ter”. Diante deste quadro trágico-cômico, cabe sonhar em um dia cuja valorização social incluirá quem de fato faz algo e não digo algo de espetacular ou grandioso, mas me refiro aqui o tempo todo também aos inúmero heróis anônimos, que, muito distantes de flashes, likes, curtidas e compartilhamentos, contribuem de fato e verdadeiramente para se construir algo de valor social e pouco mais ganham que o necessário para suas próprias sobrevivências biológicas e a humilde satisfação pessoal por ter feito algo que seja justo e verdadeiro.
Silvério da Costa Oliveira.
Prof. Dr. Silvério da Costa Oliveira.
Site: www.doutorsilverio.com
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