Professor Doutor Silvério

Blog: "Comportamento Crítico"

Professor Doutor Silvério

Silvério da Costa Oliveira é Doutor em Psicologia Social - PhD, Psicólogo, Filósofo e Escritor.

(Doutorado em Psicologia Social; Mestrado em Psicologia; Psicólogo, Bacharel em Psicologia, Bacharel em Filosofia; Licenciatura Plena em Psicologia; Licenciatura Plena em Filosofia)

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sábado, 27 de abril de 2019

O filósofo René Descartes, ou, se o preferirem: “Diretora, por favor, o professor Silvério está falando sobre o Capeta em sala de aula”


Por: Silvério da Costa Oliveira.

Hoje, quando escrevo estas linhas, já faz cerca de 11 anos nos quais trabalho na área de segurança pública, antes disto trabalhei por outros cerca de 10 anos na área da educação, atuando como professor universitário e lecionando disciplinas dentro de minhas áreas de formação acadêmica. Foi durante uma destas aulas que um fato pitoresco ocorreu e que me marcou negativamente, levando ao aumento de minha decepção com o ensino universitário brasileiro e servindo como mais uma gota no copo d’água que um dia faria com que me afastasse para respirar outros ares.
Conto como se deu o fato inusitado e que de certa forma motiva-me hoje a escrever este artigo sobre o filósofo René Descartes. Certo dia chegava eu na faculdade para lecionar uma disciplina para o curso noturno de pedagogia quando ao entrar na instituição a coordenadora me chamou a sua sala para conversarmos sobre algo supostamente sério e que ela tinha um certo constrangimento de comigo abordar. Após algumas delongas, ouvi sentado em frente a mesa da coordenadora que durante minha aula anterior, duas alunas, em verdade, duas senhoras que não faziam questão de esconder seu credo religioso, cristão evangélico, vieram a esta mesma sala se queixar a coordenadora que, segundo elas e conforme a coordenadora meio sem jeito e constrangida me disse: “O professor Silvério estava falando do Capeta em sala de aula”. Claro que fiquei confuso e não me lembrei desta situação, se bem que reconhecia que alguma coisa, fosse lá o que fosse, havia motivado as duas senhoras a se queixarem de mim na coordenação da faculdade. Bem, eu sempre segui rigorosamente os programas das disciplinas, mesmo quando não concordava com os mesmos e também devo confessar que o termo “capeta” não faz parte do meu discurso, não sendo palavra que eu use. Mistério. Pensei, pensei, de onde, ora infernos, saiu este capeta?
Depois de examinar o programa e a ementa da disciplina, bem como o diário de classe para lembrar qual fora o tema desta aula em particular, consegui desvendar o mistério que até este momento se mostrava insondável. Era uma aula sobre o filósofo francês René Descartes (1596-1650) e neste momento lembrei-me de que quando explicava sobre o conceito filosófico cartesiano do “gênio maligno”, duas senhoras que estavam sentadas a frente se levantaram resmungando e saíram de sala. Pensei que elas tinham ido ao banheiro ou algo semelhante, mas elas foram aliviar suas necessidades em outro lugar. Portanto, em homenagem a estes alunos, não importando de qual curso sejam, eis aí meu artigo sobre este importante filósofo.


René Descartes nasceu em 31 de março de 1596 na França e faleceu aos 53 anos de idade em 11 de fevereiro de 1650 em Estocolmo, Suécia, em virtude de ter contraído uma pneumonia. Acredita-se que sua doença em parte decorreu da mudança drástica de hábitos. Acostumado a um clima mais ameno, mudou-se para o clima frio da Suécia atendendo o pedido da rainha Cristina, após muita insistência e diversos pedidos anteriores polidamente recusados ou adiados. A rainha desejava aprender filosofia tendo a Descartes como professor, mas propôs a este um horário bem incômodo para um homem acostumado a acordar todos os dias por volta de meio-dia, ela queria suas aulas às cinco da manhã. Este horário ao qual Descartes não estava acostumado, bem como o frio intenso, são tidos como fatores que atuaram no desenvolvimento da pneumonia que o matou 10 dias após tê-la contraído.
Nascido em família da baixa nobreza francesa, aos oito anos de idade, em 1604, foi encaminhado ao colégio jesuíta La Flexa, em Anjou, onde fica por quase dez anos, saindo no ano de 1614. Para atender a desejo de seu pai, cursou por dois anos Direito na universidade de Poitier. Formou-se em 1616, mas não seguiu a profissão.
Dentre os dados biográficos deste autor, um em particular, um tanto estranho ou bizarro, merece algum destaque em virtude das diversas interpretações possíveis. Na noite de 10 para 11 de novembro de 1619, então com 23 anos de idade, Descartes tem os seus três famosos sonhos, cuja importância ele atribui nada menos que sua missão na vida, ou seja, desenvolver os fundamentos de uma ciência que unificaria o conhecimento humano.
Dentre os livros que escreveu, destaque deve ser dado a três que expressam suas idéias filosóficas que nos acompanham até a presente data, mesmo que outros escritos tenham ficado obsoletos com o passar dos anos, é inegável a atual importância do conjunto das idéias contidas nestes livros para a nossa sociedade contemporânea. Refiro-me a 1- Discurso do método (1637), destinado a todos, ao vulgo e não aos doutos, e por isto mesmo escrito e publicado em francês e não na língua culta da época que era o latim; 2- Meditações metafísicas (1641 em latim, e 1642 em francês), destinado aos teólogos e sua mais importante obra; 3- Princípios de filosofia (1644), livro 1, destinada aos físicos. Nestes três trabalhos Descartes expõe o seu método.
Descartes ocupa, historicamente, um lugar central entre os filósofos do século XVII, marcando profundamente a partir do seu século tudo que depois sucedeu. Além de filósofo e físico, ele é um grande matemático, sendo o criador da geometria analítica. Ele é o primeiro pensador a romper com a escolástica a partir do livre exame pela razão humana. Uma novidade em Descartes para sua época é priorizar a autoridade da razão sobre qualquer outra. O trabalho filosófico de Descartes deve ser entendido como a busca de um método correto para encontrar a verdade e evitar os erros, algo que nos permita saber distinguir o verdadeiro do falso. Ele hoje em dia é considerado o pai do Racionalismo moderno. Descartes também é considerado o primeiro filósofo moderno, pela importância que dá ao “eu”, ao sujeito do conhecimento.
A autoridade da razão pode ser algo comum aos dias atuais, mas na época de Descartes não era, estando em oposição a autoridade religiosa eclesiástica e sendo que seus contemporâneos acreditavam que a segunda era a que deveria ser levada em conta nos mais distintos assuntos.
Segundo Descartes, a ciência pode ser comparada a uma árvore e nesta metáfora, a raiz é a metafísica, o tronco a física e os galhos são os ramos da ciência, sendo os três principais, a mecânica, a medicina e a moral, que por sua vez se relacionam com as três aplicações do conhecimento humano, a saber: o mundo externo, o corpo humano e a conduta em sociedade.
Na filosofia Descartes irá contribuir com uma abordagem nova e radical no tocante a mudança de foco da autoridade expressa por livros e doutrinas religiosas para a autoridade da razão humana individual. Cada um pode e deve recorrer a sua própria razão em busca da verdade e não a opiniões de autoridades religiosas ou outras. Visando buscar uma verdade inabalável, Descartes irá por tudo em dúvida. Sua dúvida é radical, metódica e hiperbólica, mas Descartes não busca o ceticismo, não é esta a sua finalidade. A dúvida faz parte do caminho a ser percorrido, mas não é o seu destino final. Em verdade, estamos diante da busca por um método. A busca da verdade em Descartes é a busca por um método que permita atingir com segurança o seu objetivo maior.
Mas durante os anos de busca da verdade ele precisaria viver em sociedade e para tal teria de tomar decisões, como, no entanto, fazê-lo se estava imerso no ceticismo? Havia necessidade de ter um modo qualquer que o permitisse tomar decisões vinculadas a convivência diária e para tal Descartes adota algumas medidas práticas que irão gerar uma moral provisória, enquanto durar a dúvida.


Eis o método:
1- Proporcionar a si uma moral provisória que consiste em poucas máximas
A- Obedecer as leis e costumes do país e manter a religião na qual fora educado desde a infância.
No restante, seguir as opiniões mais moderadas e distantes dos excessos, expressadas e praticadas pelos mais sensatos com quem teve a oportunidade de conviver em sociedade. Para saber quais eram de fato as suas opiniões, Descartes entendeu que deveria atentar para a sua prática e ações e não necessariamente para o que estas pessoas dizem, pois, podem não querer dizer tudo o que sabem ou simplesmente não saberem por que o fazem.
Escolher como modelos e exemplos homens sensatos de preferência e via de regra mais próximos de sua pessoa do que outros que vivam em regiões e sociedades em lugares distantes do mundo.
Dentre várias opiniões diversas sobre um mesmo tema, acolher as mais moderadas.
B- Ser firme e resoluto nas ações tomadas. Uma vez decidido por um caminho a seguir, persistir no mesmo, tendo firmeza nas decisões e na realização das mesmas.
C- Focar em si próprio, procurando mudar a si e não ao mundo ao redor, controlar e mudar os desejos e não a organização do mundo circundante. A única coisa realmente em nosso poder são nossos próprios pensamentos.
D- Buscar a melhor ocupação entre os homens, dentre todas as oferecidas.
2- Se livrar de toda e qualquer opinião sobre a verdade, colocando tudo em dúvida. Destruir a casa ou morada do conhecimento em que até então residia.
Deste modo, Descartes se propõe a viver em um provisório ceticismo, até que encontre uma base na qual possa erguer uma verdade inabalável diante de sua razão. Para poder viver em sociedade adota as regras acima como uma moral provisória enquanto mantém a dúvida e se dedica as suas buscas e pesquisas quanto a verdade.
Para entender Descartes é preciso levar seus argumentos a sério e não como se fosse um jogo qualquer, não basta fingir ou fazer de conta, é preciso acompanhar seus argumentos e o caminho da dúvida hiperbólica com o máximo de seriedade. A dúvida deve ser vivida como um mergulho em águas profundas até não mais termos fôlego para prosseguir e a necessidade imperiosa de enchermos nossos pulmões de ar nos faça não poder evitar de abrir a boca, mesmo diante do medo e mesmo pavor de morrermos afogados em águas profundas e inexploradas, quando finalmente subimos a tona e tomamos o primeiro gole de ar, é com espanto extraordinário que percebemos que ainda estamos vivos. Nesta metáfora, o mergulho é a dúvida, que permanece até o limite sustentável de nossos pulmões, quando finalmente conseguimos emergir e tomar a primeira lufada de ar fresco é quando encontramos a primeira verdade inabalável: “Penso, logo sou”. “Cogito, ergo sum”.
Em seus livros, Descartes põe em dúvida, como sendo algo falso, há tudo a partir de três pontos, os quais são as etapas da dúvida hiperbólica, a saber:
1- Sentidos: Pois já me enganaram uma vez e não é prudente confiar em quem já me enganou.
2- Sonho: Talvez não possamos distinguir o sonho da realidade e deste modo não sabermos se estamos de fato dormindo ou acordados.
3- A possibilidade da existência de um deus enganador ou de um gênio maligno que me engane constantemente. Este último artifício permite por em dúvida e negar os paradigmas matemáticos.
Em Descartes a dúvida hiperbólica por ele proposta deve ser entendida como sendo sistemática e generalizada. Avança por três níveis, o primeiro é o reconhecimento dos erros provindos dos sentidos, o segundo se encontra junto ao argumento do sonho e finalmente o terceiro se dá a partir do deus enganador ou do gênio maligno. Argumento que estende a dúvida as matemáticas, afetando seu valor objetivo. A dúvida hiperbólica propõe entender como algo falso tudo que for apenas duvidoso e entender tudo o que alguma única vez me enganou como sendo algo sempre enganador.
O argumento do deus enganador ou gênio maligno é importante porque quer meus sentidos me enganem ou eu esteja acordado ou dormindo, certas coisas continuam sendo verdadeiras, coisas simples, objetos das matemáticas, tais como: figura, quantidade, espaço e tempo. 2+3 sempre terá como resultado 5 e a figura do quadrado sempre terá quatro lados iguais, nem mais, nem menos.
Além da moral provisória, Descartes nos propõe quatro regras para o método: evidência, análise, síntese e enumeração. Em verdade, seu método é menos compatível com o método científico hoje usado e bem mais semelhante a um método matemático, vide, por exemplo, o item 4, onde temos a enumeração das etapas anteriores, numa revisão do que fora feito, adequado a um método matemático, mas que no método científico deva ser substituído por experimentação, re-fazer os experimentos buscando a confirmação ou não dos resultados.
A evidência basicamente nos propõe que algo deva ser evidente por si mesmo. A análise nos fala que devemos analisar o problema dividindo um problema complexo em suas partes simples. Já a síntese nos coloca diante da necessidade, após a análise, de reunir as partes simples novamente no problema complexo. O problema passa a ser entendido como a soma de partes simples. E por fim a enumeração de todas as partes anteriores, numa verificação do que já fora feito nas etapas que antecederam.
Este método proposto por Descartes se apresenta como o método da matemática moderna, em oposição ao método de Galileu Galilei, o método científico moderno, pois, no item 4 se faz a enumeração matemática das partes analisadas como forma de verificação, já para Galileu a verificação se dá por experimentos em laboratório.
Apesar de ser comum traduzir a famosa frase de Descartes por “penso, logo existo”, isto está errado. O verbo “ser” é diferente do verbo “existir”. O correto é “penso, logo sou”. Outro erro comum é entender a frase como resultado de um raciocínio lógico, como se disséssemos que “se eu penso, logo existo” em relação a um lento raciocínio e não a uma intuição imediata como seria correto, pois, não é um raciocínio baseado em premissas e sim uma intuição imediata. O correto, portanto, é: “Penso, logo sou”. “Cogito, ergo sum”. Descartes coloca o evidente no centro do conhecimento com o cogito.
No ano de 1637 Descartes elabora uma obra cujo prefácio o tornaria famoso até os nossos dias e ganharia status de livro próprio, refiro-me a “Discurso do método”, inicialmente, como já disse, um prefácio a outras três obras de sua autoria, a saber, um tratado de ótica intitulado “A dióptrica”, e também “Os meteoros” e “A geometria”, onde temos a criação da geometria analítica com o plano cartesiano que todos já estudaram alguma vez na escola conjuntamente com as coordenadas x e y. Descartes é um matemático e cabe lembrar sua contribuição que nos acompanha até os dias presentes e que é o plano cartesiano.
Em Descartes nós temos duas substâncias distintas: a extensão e o pensamento. De um lado o espírito, pensamento, liberdade e atividade, do outro a matéria, extensão, determinismo e passividade. Ambas são diferentes e não há ação possível do espírito sobre a matéria ou vice versa, são duas substâncias heterogêneas. É a partir disto que temos o famoso dualismo cartesiano.
Todo o trabalho filosófico de Descartes se dá tomando como base idéias claras e distintas. É a partir destas idéias e seguindo seu método que ele chega ao “cogito, ergo sum”. Eu duvido, penso, logo sou (que a tradição traduziu erradamente por “existo”).
A dúvida leva a idéia do eu que penso e ao pensar, tenho a idéia do infinito, do completo, do perfeito, mas como não sou eu mesmo, há a necessidade de outro ser ter tais atributos. E eis que da dúvida total e abrangente surge primeiro a idéia clara e distinta do “eu penso, logo sou” e depois de Deus. Neste momento cabe destacar que a substância em Descartes terá como divisão a extensão e o pensamento, tendo como terceiro elemento um deus transcendente.
Deus existe e pela essência que o concebo ele não pode ser enganador, pois, a razão nos ensina que o ato de enganar provém de alguma carência e se Deus é perfeito, ele não possui carência alguma.
Podemos entender a essência perfeita de Deus como sendo: soberano, eterno, infinito, imutável, onisciente, onipotente, criador de tudo.


Portanto, a primeira verdade que extraímos da dúvida é que eu sou, a segunda é a da existência e essência de Deus, a terceira são as verdades matemáticas / geométricas e por fim, a quarta verdade é a existência da extensão.
Alguns entendem a filosofia de Descartes como solipsismo, mas isto é um erro. O solipsismo é uma doutrina na qual só existe de fato o próprio eu e as suas sensações, levando, portanto, ao ceticismo e a um completo idealismo. Ora, somente em um primeiro momento, que vai da dúvida hiperbólica até o descobrimento da primeira verdade, “penso, logo sou”, é que podemos falar em um Descartes solipsista, pois, logo a seguir ele chega a conclusão que há um deus perfeito, que as matemáticas proporcionam resultados verdadeiros e que a extensão também existe.
Em Descartes também cabe dividir as idéias em três grupos distintos, a saber: inatas, adventícias e factícias. Idéias inatas são aquelas com as quais nascemos, não dependem da aprendizagem e fazem parte de nossa mente, tais como a idéia de deus e as idéias matemáticas. Idéias adventícias são aquelas que obtemos por meio de nossos sentidos, a partir do que percebemos no mundo circundante. Idéias factícias são aquelas que provém de nossa imaginação, a partir de uma combinação de imagens provindas de nossos sentidos, ou seja, são construídas com base nas informações que já possuímos. Cabe acrescentar o princípio da correspondência em René Descartes, segundo o qual, cada idéia que possuímos corresponde a algo que de fato existe. Assim, a idéia de cavalo corresponde a um cavalo que um dia vimos e a idéia de um pássaro corresponde a este outro animal, deste modo explicamos todas as idéias adventícias, que nos vêem por meio de nossos sentidos. Quanto as idéias factícias, estas não passam da junção de elementos obtidos em diferentes coisas adquiridas por meio de observação e juntadas arbitrariamente em uma única representação. A idéia de um cavalo alado como Pégasus, se baseia na idéia de cavalo e na idéia de asas. Já a idéia de uma fada irá se basear na idéia de uma mulher tornada muito pequena com asas que podemos observar em uma borboleta. Quando levamos o princípio da correspondência para as idéias inatas, percebemos a necessidade da existência e veracidade das mesmas, tal o caso das idéias matemáticas ou de deus, pois tem de haver uma correspondência destas idéias com algo fora de nós, real, existente.
Cabe distinguir o pensamento filosófico de Descartes da tradição que o antecede. A tradição escolástica cujas fontes vão a São Tomás de Aquino e também a Aristóteles, nos traz um conhecimento sistemático, diferente da dúvida e intuição de Descartes. Vejamos um exemplo de um silogismo, então presente a esta tradição. Posso afirmar que:
Premissa maior: Todos os homens são mortais
Premissa menor: Sócrates é homem
Conclusão: Sócrates é mortal.
Ocorre que em Descartes o cogito é uma intuição e não é obtido por meio de um silogismo, trata-se, portanto, de nossa primeira e inabalável certeza. Penso, logo sou. Mesmo que não saiba o que sou, se tenho um corpo, se sou isto ou aquilo outro. Sei somente que sou um ser que duvida e para tal ato pensa e enquanto duvida e pensa é.
Com Descartes nós temos o Racionalismo, Escola filosófica que irá ter grandes representantes na filosofia e que posteriormente irá se contrapor a outra grande Escola que será criada, o Empirismo. No Racionalismo temos como base que os sentidos nos enganam, que o conhecimento é obtido por meio da razão, a importância da metafísica e de idéias evidentes, ou seja, claras e distintas.
Recapitulando, temos que na época de Descartes imperava nos meios acadêmicos a tradição Escolástica que priorizava os silogismos e a autoridade eclesiástica / religiosa para obtenção da verdade. Esta tradição se sustentava filosoficamente em Aristóteles e São Tomás de Aquino. Descartes propõe algo completamente novo, um novo método de busca da verdade usando o ceticismo e a dúvida não como um fim em si mesmo, a finalidade a qual deveria chegar a sua filosofia, mas sim como um instrumento que lhe permita prosseguir em sua busca até uma verdade inabalável. Por mais que eu duvide e que tudo seja falso, resta que eu enquanto duvido, existo. Para duvidar é preciso que haja um pensamento de dúvida e isto sou eu, mesmo que não saiba qual a minha aparência final, se meu corpo existe ou não, se existe ou não qualquer tipo de matéria além de meu próprio pensamento. Mesmo existindo um deus enganador ou um gênio maligno que em tudo me engane, fazendo com que eu erre mesmo os cálculos mais simples em matemática e me leve ao erro em todas as disciplinas, o fato de mesmo errando eu continuar pensando e duvidando é inabalável. Pois mesmo em erro, algo há, algo que eu sou, que pensa e duvida. Mas se sou a única coisa que existe no universo, tudo que possa conceber deverá também existir em mim mesmo, ocorre, no entanto, que tenho idéias tais, como perfeição e completude, que reconheço não estarem totalmente em mim, não sendo eu, portanto, o detentor de sua causa. Há, neste caso, necessidade de um outro ser que possua tais atributos e este ser é Deus. Dentro da essência que concebo para Deus, está o atributo deste ser perfeito e como tal, devo admitir que a necessidade de enganar não está nele presente, pois, tal necessidade implica em alguma falta, na carência de algo. Do mesmo modo, um dos atributos de Deus é que o mesmo é boníssimo e como poderia uma criatura sumamente boa permitir a existência de um gênio maligno que me enganasse a todo e qualquer momento? Tal necessidade de enganar ou o fato de permitir a existência de uma criatura que me faça enganar constantemente, não podem estar presentes na essência deste Deus, portanto, não havendo um deus enganador ou um gênio maligno, todas as verdades matemáticas e algébricas passam a serem aceitas como tal e também a extensão passa a ser aceita como algo real e não mero fruto do engano. Para Descartes, portanto, temos três coisas dentro do que poderíamos falar de substância, a saber: pensamento (res cogitans), extensão (res extensa) e um Deus transcendente.
Estas linhas acima mostram como costumo abordar este tema e foi mais ou menos por aí que seguiu minha aula no dia da reclamação das duas alunas citadas no começo deste artigo, claro está, no entanto, que em sala de aula o professor é como se fosse um ator em um palco e os alunos por vezes ocupam o lugar da platéia, participativa ou não. Há uma interação maior do que com o leitor e é possível alongar uma explicação ou mesmo fornecer outra explicação para um mesmo tópico se alguém demonstrar que não entendeu algo. As duas alunas em questão ficaram somente para o começo da explicação do pensamento deste filósofo. Depois da apresentação da dúvida hiperbólica e da necessidade de uma moral provisória, seguimos pelo primeiro momento da dúvida, colocando em dúvida todo o conhecimento obtido por intermédio de nossos sentidos, pois, se uma vez nos enganaram podem fazê-lo novamente, passamos para o segundo momento da dúvida, onde colocamos a possibilidade de estarmos dormindo e não sabermos distinguir o sonho da realidade e por fim chegamos ao terceiro e último momento de nossa dúvida, ao admitir a hipótese de um deus enganador ou gênio maligno. Um demônio que estivesse a sussurrar em nossos ouvidos a resposta errada mesmo para as questões mais evidentes, como os resultados advindos das matemáticas. Neste momento elas se levantaram e saíram de sala se recusando a ouvir e aprender algo novo. Talvez se ficassem, viessem a aprender uma das mais importantes provas da existência de Deus, obtida não por meio de raciocínios complicados, mas pela mais pura intuição, diante da evidência proporcionada por idéias claras e distintas. Pessoas que assim são admitidas e cursam uma faculdade podem até conseguir um diploma, mas para que isto lhes servirá? A quem nossas instituições de ensino, com a permissão calada da sociedade brasileira, estão querendo enganar?

Silvério da Costa Oliveira.

Prof. Dr. Silvério da Costa Oliveira.
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