Por: Silvério da Costa Oliveira.
Nicolas Malebranche (Paris; 1638-1715) tem como principais obras, dentre outras, a “De la recherche de la vérité” (esta obra, “A busca da verdade”, pode com certeza ser considerada sua mais importante e significativa obra filosófica; inicialmente em 3 volumes), 1674 e 1675, “Conversations métaphysiques et chrétiennes”, 1677, “Traité de la nature et de la grâce”, 1680, “Traité de morale”, 1684, “Méditations métaphysiques et chrétiennes”, 1684, “Entretiens sur la métaphysique et sur la religion”, 1688, “Traté de l’amour de Dieu”, 1697, “Entretiens d’um philosophe Chrétien et d’um phylosophe chinois sur la nature de Dieu”, 1708, “Réflexions sur la prémonition physique”, 1715.
Apesar de filósofo, Malebranche não deixa de ser não somente cristão, mas defensor da fé cristã, onde este enxerga a verdade e vê o erro na forma como escolas filosóficas anteriores e também concepções ateístas foram desenvolvidas e acompanharam, por vezes, a doutrina religiosa, portanto, Malebranche se propõe a ser um filósofo cristão.
Malebranche é discípulo de Descartes e apresenta algumas soluções onde em Descartes poderíamos ver dificuldades, como é o caso do dualismo cartesiano, o qual, levado às últimas consequências irá gerar dúvidas e aporias com relação à causalidade que observamos na natureza. Percebendo estas dificuldades, Malebranche se põe como uma ponte entre de um lado Descartes e de outro Kant com a ideia do fenômeno.
Para Malebranche a causa não pode estar nos objetos da natureza e sim em somente Deus, pois Deus é a razão e como tal a causa de tudo que percebemos ocorrer ao nosso redor, seja o movimento dos corpos ou mesmo dor provocada no nosso corpo ou qualquer movimento que façamos. De fato, antecipa também a Hume de certa forma, pois, bem percebe a dificuldade originada de destinar a causa unicamente as relações existentes entre os corpos físicos e a transfere para outro lugar, outra esfera, no caso de Malebranche, este encontrará a causa para tudo, passo a passo, em Deus. Também não será possível demonstrar racionalmente a existência do mundo ao nosso redor, mas fácil seria conhecer sua essência do que sua existência, esta última obtemos somente pela fé em Deus, o que o aproxima e prenuncia ao idealismo de Berkeley.
Segundo Malebranche, as ideias são seres reais, eternos, necessários, imutáveis e infinitos, se encontrando em Deus. Em Deus se encontra originariamente todas as ideias perfeitas. Vemos aqui uma forte influência de leituras e estudos da obra de Santo Agostinho.
A partir da problemática levantada pelo dualismo proposto por Descartes entre a coisa extensa e a coisa pensante, o corpo e a mente, podemos solucionar por duas vertentes possíveis como se dá a relação entre ambas, uma vez que uma não influi sobre a outra. Em alguns autores, dentre os quais Leibniz podemos pensar em acontecimentos simultâneos, como se fossem dois relógios distintos marcando a mesma hora. Trata-se de uma solução que propõe um paralelismo perfeito que teria sido criado por Deus. Uma segunda alternativa possível é de uma intervenção direta de Deus em cada momento e a todo instante, trata-se aqui do ocasionalismo de Malebranche, onde o corpo não influi na alma e nem esta naquele, mas sim Deus está sempre fazendo com que a alma sinta de acordo com o que ocorra com o corpo e que o corpo demonstre em si o que se passa na alma, e deste modo teríamos o movimento, mas também a dor, o prazer, as sensações, e tudo o mais que possa se passar ora no corpo, ora na alma. De um lado alma ou pensamento e de outro corpo ou extensão em um dualismo radical e incomunicável, torna necessária uma solução que contemple a interação entre os dois, seja por um paralelismo perfeito ou por meio do ocasionalismo.
Que fique claro que o Deus proposto racionalmente por Malebranche tem características próprias e bem definidas, tais como amar a ordem e sempre atuar a partir dos meios mais simples, deste modo, todo o seu agir se dá por meio de decretos imutáveis e leis universais, atuando sempre em termos gerais e não em casos particulares. Vemos aqui que há uma aproximação muito forte de uma leitura de Spinoza. Esta crítica a relação causa efeito nos corpos materiais e a afirmação de que Deus age por meios mais simples e de modo ordenado, nos faz pensar em leis da natureza no lugar de causalidade e nos aproxima do pensamento de Augusto Comte com o Positivismo.
Segundo o pensamento de Malebranche, deve-se se dar primazia aos escritos sagrados e a revelação dos dogmas contidos na Bíblia perante a filosofia e que nós, seres humanos, não possuímos uma luz própria racional independente de Deus, pois é nele onde se encontra as idéias que nos permitem entender o mundo ao nosso redor. Quando pensamos em “alma ou mente” e sua relação com o corpo humano, segundo o entendimento de Malebranche, ignoramos que se esta relação se dá de modo forte é por causa do pecado original, pois, antes do mesmo a relação da alma se dava diretamente com Deus e não com o corpo, sendo esta a fonte dos mais diversos erros.
Os seres particulares não são causa de coisa alguma, pois causar é criar e só Deus pode criar. Malebranche se propõe a analisar as causas dos erros na percepção da alma, se se dariam por três modos: sentidos, imaginação e sentimento. Toda percepção e conhecimento da alma se origina, portanto, dos sentidos, da imaginação e do sentimento. Neste ínterim entra a teoria das causas ocasionais, onde passamos a ter a intervenção constante de Deus a cada ação ou interação, sendo Deus a razão e também a única causa possível, pois causar é criar e só há um Deus criador. Em virtude do pecado original, nos afastamos da relação mais íntima que tínhamos anteriormente com Deus e se ampliou a relação de nossa alma com o corpo, sendo daí originados os diversos erros de percepção oriundos de nossos sentidos, de nossa imaginação e dos sentimentos.
A principal conclusão que chega Malebranche a partir do dualismo entre res extensa e res cogitans apresentado por Descartes é que a solução proposta por este de uma ligação e atuação entre ambas a partir da glândula pineal é equivocada, pois, segundo o desenvolvimento do pensamento de Malebranche, não seria possível qualquer influência entre a coisa extensa e a coisa pensante, entre o corpo e a mente ou alma. Se não há qualquer possibilidade de interação entre estas duas substâncias, cabe a Deus ser a causa eficiente sempre presente quando qualquer possível interação entre estas duas substâncias vier a ocorrer. Deus é a única causa. Não há causa entre corpo e mente. A mente não atua sobre o corpo e este não atua sobre a mente.
A tese da visão em Deus, de Malebranche, se baseia em dois pontos, sendo o primeiro o de que as ideias possuem um caráter necessário e indispensável na percepção dos objetos, e o segundo, que as ideias são entidades em Deus, logo, toda percepção de objetos materiais é percepção em Deus, daí, a visão em Deus. As ideias são necessárias e entidades na mente divina. A doutrina da visão em Deus exprime bem a dependência da percepção sensorial e cognitiva do ser humano perante Deus.
Outro argumento de Malebranche é o da impossibilidade da alma sair do corpo para travar algum contato com coisas do mundo exterior e deste modo conhece-las, como poderia se dar o conhecimento do sol pela visão, por exemplo, e este argumento é chamado de “alma caminhante”, pois, implicaria na caminhada da alma pelo mundo para poder conhece-lo. Em verdade, para Malebranche os corpos e nossa alma ou mente são passivos diante de modificações, movimento e conhecimento, ficando a atividade e as causas unicamente destinadas a Deus.
Apesar de não ser esta sua intenção, sua abordagem o aproximará da idéia de Deus formulada por Spinoza e do conceito de um Deus vinculado à natureza, como sendo a própria natureza, presente aos filósofos naturalistas do século XVIII. Malebranche fez escola como representante de um determinado tipo de filosofia, trazendo em si um raciocínio elaborado a partir da obra de Descartes e também de Santo Agostinho, mantendo uma razão lúcida conjuntamente com a fé cristã e provavelmente uma presença sentida, mas não assumida, de Spinoza, de modo que seu pensamento esteve presente no século dos filósofos, o século XVIII, e foi responsável por iniciar argumentações novas e críticas por parte de filósofos que precisavam de um sólido conjunto de ideias e reflexões filosóficas para suprirem a ausência de sistemas filosóficos então presente ao seu século. Tal foi o caso, por exemplo, de Montesquieu com a lei natural, Voltaire com o argumento teológico e Rousseau com o Adão primitivo, são alguns momentos onde podemos observar a inspiração e influência de Malebranche nos filósofos posteriores.
Algumas dificuldades podem ser suscitadas a partir dos argumentos desenvolvidos por Malebranche, abrindo espaço para estranheza e críticas diversas. A tese defendida por Malebranche do ocasionalismo pode comprometer a nossa liberdade humana e como tal foi alvo de críticas já por seus contemporâneos, no entanto, Malebranche defende a liberdade humana e que este pode pecar e fazer o mal, pois, mesmo Deus lhe proporcionando as ações adequadas a uma dada situação, cabe a pessoa o consentimento e é por esta idéia de consentimento que vemos surgir um princípio ou início do que podemos chamar de consciência e a real liberdade humana. Quanto à certeza de nossa existência, nós a temos por meio de um sentimento interior, o que faz com que seja mais fácil entender nossa existência do que nossa essência, já com relação as demais pessoas / mentes, nós podemos intuir sua existência e com relação ao mundo exterior, cabe confiar na Bíblia que afirma sua existência, trata-se, portanto, de um ato de fé. Portanto, no tocante a nós mesmos, conhecemos imediatamente nossa existência por meio de um sentimento interior, mas temos dificuldades com conhecer nossa real essência, já com relação ao mundo exterior, conhecemos inicialmente sua essência, mas não sua existência, pois esta só nos é dada e confirmada pela fé em Deus e na Bíblia que afirma a sua existência.
Como explicamos acima, três noções e argumentos são importantes para entendermos parte do pensamento de Malebranche: o ocasionalismo, a visão em Deus e a alma caminhante. Hoje, Malebranche pode estar um pouco eclipsado por outros filósofos e teorias mais ao gosto da época em que vivemos, mas no decorrer dos séculos XVII e XVIII ele exerceu grande influência e foi muito lido pelos mais distintos pensadores e se podemos constatar nele fortes influências de santo Agostinho, Descartes e Spinoza, podemos também constatar que Malebranche veio a influenciar diretamente a obra de Leibniz, Berkeley, Hume e Kant. Deste modo, mesmo que a linguagem filosófica esteja imbuída de noções e conceitos religiosos, temos antes de tudo uma filosofia consistente onde Deus tem um papel com certeza importante, mas que não deve fazer com que percamos de vista os problemas por tal filosofia elaborados e as dificuldades que irão culminar em desenvolvimentos posteriores por outros filósofos. Malebranche metaforicamente dentro da história da filosofia atua como uma ponte que não somente aponta o caminho a ser cruzado, como também apresenta os sutis recursos que permitem a travessia.
Silvério da Costa Oliveira.
Prof. Dr. Silvério da Costa Oliveira.
1- Site: www.doutorsilverio.com
(Respeite os Direitos Autorais – Respeite a autoria do texto – Todo autor tem o direito de ter seu nome citado junto aos textos de sua autoria)
Nenhum comentário:
Postar um comentário