Por: Silvério da Costa Oliveira.
Schleiermacher
1- VIDA
Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834) nasce na cidade de Breslau e falece em Berlin. Seu pai era pastor protestante, tendo Schleiermacher vivido sua infância em um ambiente familiar religioso.
A forma de se escrever e organizar os nomes do meio de uma pessoa, dentro da cultura alemã, é flexível, de modo que, é possível se escrever “Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher” e também Friedrich Ernst Daniel Schleiermacher” e embora seja mais comum, mesmo no meio acadêmico, a primeira forma, ambas estão corretas.
Estudou teologia e filosofia na Universidade de Halle, iniciando seus estudos em 1787, e na Universidade de Göttingen, atuou como pastor protestante e professor de filosofia e teologia, tendo lecionado nas universidades de Halle a partir de 1796, e posteriormente Berlim, tendo se mudado e começado a lecionar nesta última cidade em 1802. Em 1809, casa-se com Eleonore Grünow, com quem teve dois filhos.
Schleiermacher é teólogo, filósofo, professor e escritor. Exerceu influência significativa no desenvolvimento subsequente da filosofia e da teologia, em particular no decorrer do século XIX. Sua obra teve presença marcante e influenciou a teologia alemã. Também traduziu alguns diálogos presentes nas obras de Platão e partes do Novo Testamento para o alemão, em particular, demonstrou um maior interesse pelo Evangelho de São João. Também exerceu um papel significativo, apresentando contribuições para o desenvolvimento da ética, da hermenêutica, da filosofia da religião e da filosofia da linguagem. Sua obra influenciou pensadores posteriores, tais como, dentre outros, Dilthey, Søren Kierkegaard e Rudolf Otto.
Também contribuiu para o desenvolvimento da hermenêutica, entendida como a correta interpretação e compreensão de textos, dentro do contexto da linguagem e dos aspectos psicológicos presentes no autor.
Na ética argumentou que a moralidade se baseia na ligação entre a individualidade e a comunidade. Também esteve presente com desenvolvimentos na filosofia da linguagem, destacando que a linguagem é uma expressão da experiência subjetiva.
Sofreu influência de Kant, Fichte, Schelling e Hegel. Alguns comentadores reportam ter ele estudado a obra de Spinoza e se dedicado ao estudo do misticismo. Sua obra teve forte e duradouro impacto na cultura filosófica e teológica alemã, continuando a exercer influência mesmo nos dias atuais, onde continua a ser estudado e debatido. Em sua vida sofreu influência e, por sua vez, também influenciou o Romantismo e o Idealismo Alemão, podendo ser considerado um integrante de ambos os movimentos.
Contemporâneo do Romantismo Alemão, compartilha com este movimento das mesmas preocupações em relação à ênfase na experiência, à importância da intuição e da sensibilidade emocional, e à valorização da natureza humana. O Romantismo enfatizava a expressão emocional, a subjetividade e a valorização das experiências emocionais. Já com o Idealismo Alemão, apresenta fortes vínculos, em particular na elaboração de suas ideias sobre a relação entre religião, filosofia e experiência humana. Cabe destacar, no entanto, sua genialidade que o faz transcender a qualquer movimento específico, tornando-o um pensador com características únicas e distintas de outros românticos ou idealistas.
Sua visão teológica influenciou o desenvolvimento teológico da religião cristã na Alemanha, sendo visto por alguns comentadores como sendo o pai fundador do assim chamado “liberalismo teológico protestante”, ou, “Teologia protestante liberal”, pela qual faz a defesa de uma abordagem mais racional e subjetiva da fé, buscando-se uma reconciliação entre religião e pensamento racional.
2- HERMENÊUTICA
Coube a Dilthey trazer o foco das atenções para a hermenêutica deste autor, pois, antes ela estava relegada ao esquecimento, estando os comentadores mais voltados para a parte religiosa de sua obra. A dificuldade com relação a parte de sua obra voltada para a hermenêutica se deu em virtude da apresentação da mesma. Este trabalho consiste nas aulas que ministrou nas universidades de Halle e Berlim entre os anos de 1805 e 1833, mas nunca foram pelo autor organizadas coerentemente em uma obra ou curso sobre o tema para apresentação ao público em geral. Os trabalhos sobre hermenêutica encontravam-se no formato de palestras, duas proferidas no plenário da Academia Prussiana de Ciências, de um total de nove palestras, também de notas, fragmentos e aforismos vinculados às suas aulas em Halle e Berlim.
Schleiermacher é um dos precursores da atual hermenêutica. Ele entendia que para a correta compreensão de um texto ou discurso, cabia ir até o momento inicial de sua produção, buscando por tal modo, evitar alguma interpretação errônea do texto e mais se aproximando da veracidade do mesmo no contexto em que foi criado, do seu significado e das reais intenções do autor.
Alguns comentadores consideram Schleiermacher como o pai da hermenêutica moderna, a arte de interpretar corretamente de modo a propiciar o entendimento de um dado texto. Influenciado por Kant, o ponto de partida de sua hermenêutica pode ser encontrado junto à primeira crítica deste filósofo, ao propor uma crítica a nossa capacidade de conhecer. Vários outros autores já haviam se debruçado sobre a arte de interpretar textos antes de Schleiermacher, no entanto, coube a este último unir as diversas regras que tratavam o assunto por partes, buscando um problema prévio a todas estas regras, uma busca da compreensão do conhecimento.
Anteriormente aos trabalhos de Schleiermacher, a hermenêutica se ocupava de textos bíblicos, era uma disciplina voltada exclusivamente para textos clássicos na teologia. A partir de Schleiermacher temos uma expansão no campo da hermenêutica, deixando de ser apenas um conjunto instrumental de regras a ser aplicado a um único campo do saber humano, a teologia, para ser uma análise do problema da interpretação de um modo universal, aberto a qualquer tipo de texto ou discurso falado ou escrito. Coube a Schleiermacher trazer o método hermenêutico para o que seria futuramente um reconhecimento sobre a sua cientificidade, introduzindo este método na história e na filologia.
Seu trabalho sobre hermenêutica deve ter sido provavelmente influenciado por várias fontes no decorrer de sua vida, mas caberia destacar a duas, suas traduções para o alemão de partes do Novo Testamento e de algumas das obras de Platão (“Leis”, “Sofista”). Ele não traduziu estas obras em sua totalidade para o alemão, mas apresentou significativas contribuições.
Importante a ideia de que para se compreender parte do texto, uma frase ou parágrafo, é importante conhecer o todo do qual o mesmo faz parte, o capítulo, o livro, a obra e a vida do autor, ou seja, para melhor compreender a parte precisamos compreender o todo e para melhor compreender o todo precisamos bem compreender a parte. Isto é chamado de círculo hermenêutico e é um conceito anterior a Schleiermacher que foi retomado por este autor.
Seguindo o pensamento de Schleiermacher, a hermenêutica, enquanto interpretação correta de um texto ou discurso, é uma arte, no sentido de que por meio da mesma é possível reconstruir da forma mais correta e completa possível toda a evolução presente na atividade criativa construtiva de quem produziu o texto ou discurso. É preciso compreender o texto por meio da linguagem nele empregada e por meio do falante que dele fez e faz uso. A compreensão hermenêutica é formada por dois momentos, um gramatical e outro psicológico.
Se afastando do sujeito transcendental presente em Kant, busca um sujeito histórico e limitado em relação com outros sujeitos históricos e também limitados, valorizando a linguagem, superando suas limitações e se aproximando da verdade.
A linguagem se apresenta como uma estrutura histórica que se forma e muda no decorrer do tempo histórico. Schleiermacher divide seus estudos sobre hermenêutica em um aspecto gramatical, que cuida da compreensão da linguagem e, por outro lado, em um aspecto técnico-psicológico, que cuida da compreensão do autor do texto ou discurso em análise. Quando diante da interpretação gramatical, o humano passa a ser entendido a partir do prisma da linguagem, já diante da interpretação técnico-psicológica, a linguagem passa a ser entendida pelo prisma do humano, ambos, linguagem e humano, sempre relacionados entre si. Isto tende a tornar a hermenêutica em uma arte, e não no mero emprego de regras. O que nos traz para uma questão básica presente na hermenêutica, de face dupla, que pode ser assim expressa: Como é possível definir o sentido do texto ou discurso? E como é possível definir a intenção subjetiva presente no autor? Há aqui a necessidade de uma dupla compreensão. É necessário compreender a língua, mas também é necessário compreender o falante.
Quando Schleiermacher destaca a importância da compreensão do autor na sua ação de escrever o texto ou proferir o discurso, temos o que este chamou de compreensão divinatória, que hoje poderíamos entender como uma forma de empatia para com o autor original do texto. Neste contexto, busca-se formar uma empatia entre o intérprete da obra e o autor da mesma. Trata-se de uma aproximação psicológica e intuitiva da obra pelo prisma da subjetividade do autor que a criou.
Há também um outro nível, que é o da compreensão comparativa e histórica, na qual o interprete busca qual o sentido, qual a intenção original do autor por meio de elementos objetivos, comparando o escrito em pauta com outros escritos do mesmo autor e, também com outros elementos históricos vinculados ao respectivo texto.
Schleiermacher entendia a hermenêutica como uma forma de compreender os verdadeiros pensamentos, sentimentos e intenções do autor de dado texto em análise, permitindo ao leitor poder se colocar na perspectiva do próprio autor do texto, na tentativa de melhor entender o que este buscava inicialmente comunicar.
Para a devida compreensão de um texto é necessário interpretar corretamente o uso da linguagem, bem como o estilo e tom do texto dado pelo autor, captando seu contexto emocional. Cabe àquele que está buscando interpretar um texto, trazer sua própria perspectiva, experiência e sentimentos, buscando se colocar no lugar do autor original, compartilhando da mesma experiência. Aqui temos a empatia por parte do interprete para com o autor do texto, e para isto é preciso ter, também, sensibilidade emocional.
A interpretação de um texto, seja religioso ou sobre outra temática qualquer, dentro da hermenêutica proposta por Schleiermacher, envolve não somente uma análise gramatical com relação as palavras ali usadas, mas também uma tentativa de compreender o real estado emocional presente no autor do texto, o local e a comunidade onde tal texto foi inicialmente escrito, bem como, a experiência emocional que o texto busca transmitir ao leitor. Tudo isto junto requer uma abordagem subjetiva na qual aquele que busca interpretar o texto deva buscar se colocar no lugar do autor, numa relação empática onde se tenta perceber o que o autor estava sentindo e o que ele intencionava, quando da confecção do texto.
Podemos falar em duas hermenêuticas no pensamento de Schleiermacher, uma técnica, hermenêutica de compreensão, e outra crítica, hermenêutica da exposição. A técnica busca a compreensão do pensamento original do autor e a crítica está focada na exposição deste mesmo pensamento para outros leitores. Ambas são importantes e estão conjuntamente presentes na interpretação de textos.
Um mesmo texto pode ter diferentes interpretações feitas por interpretes distintos que partiram de perspectivas diversas, não sendo isto algo ruim e podendo, mesmo, ser algo desejável, desde, claro está, que fundamentadas na empatia e na compreensão do texto e do autor.
Suas ideias sobre hermenêutica podem ser entendidas como uma ampliação das ideias que mantinha sobre religião e teologia, enfatizando e valorizando em ambas a compreensão da experiência humana e a interpretação subjetiva.
As ideias de Schleiermacher sobre hermenêutica tem influência até os presentes dias e estão presentes em discussões acadêmicas sobre a temática, enfocando a importância da empatia, da sensibilidade emocional e da interpretação subjetiva.
3- RELIGIÃO
Schleiermacher buscou reconciliar a religião com o pensamento racional. Dentro do entendimento deste autor, razão e religião não são coisas incompatíveis, podendo a teologia se adaptar ao pensamento racional crítico.
Três são os conceitos filosóficos básicos presentes na elaboração teológica de Schleiermacher: entender a religião como um sentimento; a total dependência de Deus; a consciência possuir distintos níveis.
Segundo o autor, há no humano um sentimento que o liga a Deus, algo semelhante a um senso interior que afirma a continuidade com o Espírito. Não se trata de mera emoção e sim do reconhecimento de que tudo que há procede de uma origem comum, na qual todas as coisas são em essência, idênticas. O humano possui a consciência da existência de algo infinito. A real sede da religião encontra-se no interior do humano, no íntimo de cada um de nós. As evidências sobre a existência de uma realidade superior, que engloba e transcende o humano, encontram-se nas intuições presentes no íntimo de cada humano, de modo que, a base da religião se encontra na experiência íntima de cada um.
Há uma dependência total de Deus, manifestada neste sentimento presente no humano sobre o Espírito. Um sentimento religioso de dependência do Todo, uma sensação de reconhecimento de ser algo contingente. Já que a religião se mostra como um sentimento pessoal e interior humano, mais importante do que ensinar formalmente, é proporcionar o exemplo de vida. Além disto, já que cada pessoa terá seu próprio sentimento, não é possível haver uma única religião ou forma de entender Deus, cabe aqui não a finitude, e sim a infinitude de manifestações religiosas, todas elas válidas.
Este sentimento de dependência de um Todo infinito há de se mostrar em cada pessoa em distintos níveis de consciência, que podem ir de um grau muito baixo até um muito elevado. Partindo desta ideia, Schleiermacher define o pecado como sendo uma preocupação exclusiva com o mundo circundante, afastando a pessoa da total dependência de Deus. O pecado tende a se mostrar como um tipo de prisão da consciência humana ao finito, recusando-se a se identificar com o universo, reconhecendo sua dependência de um todo maior.
Acima da Bíblia e dos demais escritos religiosos, deve-se colocar a experiência religiosa individual, o sentimento de ser um com o todo, de total dependência do todo, de reconhecimento da existência do infinito.
Dentro da visão teológica deste autor, não há espaço para o pecado original ou para a natureza dual de Jesus (homem e Deus) ou para o sobrenatural. O pecado é acreditar na própria autonomia diante do Todo que é Deus, já a salvação se mostra como o ato de livrar-se desta crença. A natureza divina de Jesus Cristo é negada, bem como, o significado expiatório de sua morte em relação ao pecado original. A salvação após a morte não é algo individual e sim a junção a um todo universal, no infinito, sem qualquer individualidade e confundindo-se com o universo, dissolvendo-se no todo universal. Jesus Cristo passa a ser entendido como um modelo de profunda e constante dependência do Todo, a ser seguido, e não como Deus.
É por meio da religião que se realiza a identidade de ser e pensamento. A religião se mostra como o sentimento do infinito. Entende que a religião não deva ser entendida como um mero conjunto ou sistema de crenças e dogmas, mas sim, como uma experiência interior no qual temos um sentimento de dependência absoluta da Divindade.
Schleiermacher concentra na experiência religiosa e na interpretação subjetiva da fé a base de seu pensamento sobre religião e teologia. Segundo este autor, a religião não é prioritariamente uma questão de doutrina, dogmas ou moralidade, trata-se de outra coisa, da experiência subjetiva. A religião traz um sentimento de dependência absoluta, uma sensação de conexão com o divino, conexão com o infinito. O ponto central da religião é o sentimento de dependência para com algo muito maior do que a pessoa. A religião se mostra como a resposta a este sentimento de dependência, numa tentativa do sujeito de se relacionar com o divino e deste modo conseguir atender as reivindicações deste sentimento.
A teologia deve se colocar como uma reflexão sobre a experiência religiosa e não sobre um dado sistema de crenças ou dogmas. Para este filósofo, caberia aos teólogos tentar entender e explicar a experiência religiosa obtida pelas pessoas. Entende que a religião é uma linguagem universal que conecta todas as pessoas, permitindo que as mesmas se comuniquem sobre questões espirituais, sendo a religião parte intrínseca da experiência humana, tendo uma atuação importantíssima na coesão social.
Ao compararmos o pensamento de Schleiermacher sobre teologia com o pensamento tradicional sobre este mesmo tema, temos que este autor proporciona maior ênfase a experiência subjetiva, em vez da doutrina ou dogmas presentes na teologia tradicional. Para a visão conservadora da teologia, a religião tende a se mostrar como a aceitação de um dado conjunto de crenças predefinidas, já para Schleiermacher, não, a religião se dá a partir do sentimento de uma conexão com o divino. Na abordagem tradicional da religião, geralmente se enfatiza a autoridade eclesiástica e a uniformidade no tocante às crenças, já para Schleiermacher, temos a defesa de uma interpretação subjetiva da fé, cujo núcleo é a experiência religiosa de cada pessoa em particular. Enquanto na religião e teologia tradicional se centra na aceitação da autoridade e da doutrina, sem questionamentos, Schleiermacher propõe reconciliar a religião com o pensamento racional, buscando uma teologia acessível à crítica feita pela razão. Para o autor, a religião é uma linguagem universal que proporciona a comunicação entre as diversas pessoas sobre questões morais e espirituais, já na teologia tradicional o foco está na preservação de tradições e rituais. Enquanto a teologia tradicional se mostra exclusivista e focada em uma única verdade e tradição religiosa, Schleiermacher busca reunir uma variedade de diferentes tradições religiosas. Muitas vezes a teologia tradicional tende a acentuar divisões e tensões diversas a partir de questões religiosas, já Schleiermacher entendia a religião como uma forma de obter coesão social, como uma força unificadora que possa transcender as divisões culturais e mesmo religiosas.
Em síntese, enquanto a teologia tradicional enfoca a doutrina, os dogmas, a autoridade e a uniformidade de crenças, Schleiermacher prioriza a experiência religiosa, a subjetividade e a reconciliação entre religião e pensamento racional e crítico. Enquanto Schleiermacher se direcionava para uma abordagem focada na experiência religiosa e na razão humana, a teologia tradicional tendia a valorizar a tradição, a autoridade e a ortodoxia doutrinária. Esta diferença é que irá marcar o início do desenvolvimento da teologia protestante liberal, bem como, enriquecer o debate teórico no pensamento teológico no decorrer do século XIX na Alemanha.
Cabe destacar a relação entre razão e fé presente na filosofia de Schleiermacher, tópico fundamental em sua obra. No momento histórico em que viveu Schleiermacher, a religião estava sob a crítica severa do Iluminismo, que apontava para o conflito existente entre razão e fé. Schleiermachger reconhece a autonomia da religião e da razão, ambos possuem domínios distintos e distintas esferas de influência. A religião não é uma rival da razão e sim, atua de modo complementar a mesma, preenchendo as lacunas deixadas pela razão e proporcionando um significado e sentido mais profundo para a vida. A filosofia se relaciona com a religião na medida em que a filosofia nos proporciona a oportunidade de exploração racional do mundo e, por sua vez, a religião oferece uma dimensão espiritual que transcende a esfera unicamente intelectual.
Pode haver harmonia entre razão e fé. A fé pode ser entendida como sendo uma dimensão que proporciona significado e profundidade a nossa compreensão racional do mundo. A religião é compreendida como sendo um sentimento ou experiência subjetiva. Na religião temos a manifestação do sentimento de dependência absoluta do divino. A fé possui uma natureza individual, sendo uma experiência única para cada nova pessoa. A relação entre razão e fé pode variar de acordo com a experiência individual.
Resumindo, no pensamento de Schleiermacher é reconhecida a importância tanto da razão como também da fé, entendendo que ambas podem coexistir de modo harmônico. Scheleiermacher dá ênfase a natureza individual da fé e que razão e religião podem atuar de modo complementar uma a outra, destacando a importância da experiência religiosa na vida de todas as pessoas e na coesão da comunidade.
Também importante é a relação entre religião e cultura, presente no pensamento de Schleiermacher. Esta ênfase é encontrada em várias de suas obras, mas cabe destaque a "Sobre a Religião: Discursos aos Educandos" ("Über die Religion: Reden an die Gebildeten unter ihren Verächtern"), obra na qual é trabalhada a relação entre religião, cultura e educação de modo mais aprofundado. A religião aparece como uma manifestação cultural, moldada pelo contexto cultural da sociedade.
A religião é uma forma de expressão cultural fortemente ligada a uma dada comunidade e ao contexto histórico da mesma, deste modo, a religião tende a se manifestar de formas diferentes em culturas e períodos históricos também diferentes. Também podemos encontrar neste filósofo o germe de uma abordagem comparativa entre religiões, destacando que cada religião há de se diferenciar em relação a cultura e contexto no qual está inserida. Não é possível isolar a religião das influências culturais e históricas presentes na comunidade. A religião é uma parte não separável da cultura. A religião possui elementos universais conjuntamente com elementos particulares presentes a cultura de uma dada comunidade, havendo, portanto, uma diversidade religiosa. Em virtude da diversidade religiosa provinda da cultura, e do sentimento religioso individual, defende a tolerância religiosa e o respeito as diversas tradições.
4- ÉTICA E MORAL
Na obra de Schleiermacher também encontramos o desenvolvimento de uma ética e moral, relacionadas com a religião e a filosofia. Em sua abordagem sobre tal temática, temos a ênfase na experiência, na interpretação subjetiva e na reconciliação entre religião e razão, já presentes em outros campos de sua filosofia.
A ética é uma expressão da religião, sendo a moralidade uma manifestação do sentimento religioso e da dependência para com o absoluto, o divino. A moralidade se dá como uma resposta à experiência religiosa. A moralidade e a religião se mostram como interdependentes. A moralidade é um aspecto da religião, e a religião, tende a moldar e informar a ética. Esta interdependência entre moralidade e religião se relaciona com a ênfase dada por Schleiermacher à experiência religiosa como sendo um sentimento de dependência absoluta.
Segundo este filósofo, a moralidade se baseia na conexão entre o sujeito e a comunidade. A moralidade é um aspecto da vida comunitária, na qual as pessoas expressam sua dependência mútua e seu compromisso em viver de acordo com princípios éticos compartilhados.
A ação moral resulta da vontade de agir de acordo com os princípios éticos e é oriunda da experiência religiosa. A ação ética está relacionada à vontade e à decisão tomada pelo sujeito.
A ética e a moral, segundo este filósofo, estão intrinsecamente relacionadas com a religião e a experiência religiosa. Ele enfatiza a importância da ação ética enquanto expressão da fé e da conexão com a comunidade, indo de encontro a uma moralidade universal que transcenda as fronteiras culturais e religiosas presentes em uma dada região.
Pensemos em um exemplo, tal como roubar ou matar a outro humano. Um sujeito que age de acordo com um comportamento ético e moral tende a nortear suas ações na experiência religiosa da dependência absoluta do divino e, também, no sentimento de conexão com a comunidade. Por acreditar que a moralidade é uma manifestação de sua fé religiosa, escolhe não praticar estas ações (roubar, matar outro humano), pois, tais comportamentos seriam contraproducentes para sua comunidade e contrários aos princípios éticos universais.
Ao enfatizar a dependência absoluta do divino como base de sua ética, entende que a moralidade surge da consciência desta dependência. Ao reconhecer a presença do divino na vida diária e buscar uma conexão espiritual com o mesmo, busca-se desenvolver uma relação sincera e profunda com este mesmo divino, fonte de toda moralidade e que nos faz direcionar nosso comportamento de modo ético e moral.
A moralidade se apresenta como expressão da vida comunitária e da dependência mútua entre os sujeitos em dada sociedade. As mesmas diretrizes morais, derivadas da experiência religiosa, devem ser aplicadas a todos. A ação ética se mostra como algo resultante da vontade do sujeito, refletindo a decisão de se comportar de acordo com os princípios éticos, oriundos da experiência religiosa.
Uma pessoa para manter um comportamento ético e moral deve: 1- Reconhecer a dependência absoluta do divino em sua vida; 2- Cultivar uma relação espiritual com o divino por meio da oração, meditação e reflexão; 3- Participar ativamente em sua comunidade, demonstrando solidariedade e cuidado pelos outros; 4- Tomar decisões éticas baseadas em princípios morais que reflitam sua experiência religiosa; 5- Buscar aplicar esses princípios de maneira universal, considerando a humanidade como um todo.
Sua ética e moral se mostra intimamente vinculada à religião e à experiência religiosa. Destaca e prioriza a dependência absoluta do divino e a experiência da presença deste divino na vida da pessoa. Sua visão de uma ética e moral abrange uma contínua busca por uma conexão espiritual e pela expressão prática na vida comunitária, onde se fazem presentes princípios morais universais.
Ao afirmar a dependência absoluta do Divino como base de sua filosofia, temos que todos os humanos se encontram ligados a este Divino e são dependentes deste Divino em suas vidas. Se alguém efetua uma ação prejudicial a outro humano, como matar ou roubar, está cometendo uma violação desta dependência absoluta do divino.
A experiência religiosa envolve a consciência da presença do divino na vida do dia-a-dia, se a pessoa opta por uma ação prejudicial a outro humano, como matar ou roubar, esta ação atua como uma negação da presença divina, sendo uma ruptura da conexão espiritual com este mesmo divino.
Ao enfatizar a importância da comunidade e da solidariedade em sua ética, ações prejudiciais a outros humanos, como matar e roubar, tendem a prejudicar a comunidade e romper com os laços de solidariedade entre as diversas pessoas que compõem esta comunidade, o que se mostra contrário aos princípios éticos obtidos por meio da experiência religiosa.
A moralidade é universal e transcende as fronteiras culturais e religiosas, ao exercer uma ação prejudicial a outros humanos, como matar ou roubar, tal ação viola os princípios éticos universais baseados na experiência religiosa, sendo, portanto, errada.
Em resumo, o comportamento imoral, como matar ou roubar, é errado porque viola a dependência absoluta do divino, rompe a consciência da presença divina, prejudica a comunidade e contraria os princípios éticos universais baseados na experiência religiosa. Schleiermacher nos apresenta uma ética presente na relação do sujeito com o divino e também na compreensão da moralidade enquanto expressão da religião, do sentimento religioso.
Sua ética está intimamente presente na sua filosofia da religião e na experiência religiosa. Em sua ética destaca a importância da autenticidade e da integridade. Toda ação ética deve ser direcionada pela sinceridade e honestidade em relação a experiência religiosa e a relação do sujeito com o divino.
O comportamento ético e moral é uma expressão de altruísmo, ao nos preocuparmos em cuidar de outras pessoas, em atentarmos para o bem estar da comunidade e a solidariedade presente entre as diversas pessoas dentro desta mesma comunidade.
As ideias éticas de Schleiermacher têm sua origem no contexto religioso, na experiência religiosa, na dependência com o divino. Sua ética se vincula a sua filosofia e modo como entende a religião.
A moralidade é a expressão prática da experiência religiosa. O comportamento moral tende a refletir a relação entre o sujeito e o divino, sendo parte integrante da religião tal como a concebe este autor.
A interpretação dos princípios éticos pode ser diferente entre as diversas pessoas em virtude da complexidade presente na ética, mas todas estas possíveis perspectivas éticas estão intimamente vinculadas a experiência religiosa e como tal, são válidas.
As ideias defendidas por Schleiermacher quanto à importância da dependência do divino, da solidariedade com a comunidade, da autenticidade ética, ainda se mostram válidos e desafiadores nos dias atuais.
5- FILOSOFIA DA LINGUAGEM
Schleiermacher é conhecido e estudado por suas contribuições à religião e à hermenêutica, não sendo suas contribuições para a filosofia da linguagem destacadas como em outros filósofos, no entanto, cabe aqui mencionar que ele fez, sim, algumas considerações sobre a linguagem em suas obras, em particular com relação à discussão sobre a hermenêutica e a interpretação.
Sua influência e contribuição na filosofia da linguagem é indireta, se dando por meio de suas reflexões sobre a interpretação e a compreensão de textos dentro de sua hermenêutica. Dentro do pensamento deste autor, a correta compreensão de um texto abrange também a análise do contexto histórico, cultural, linguístico e psicológico com relação ao texto e ao autor. Ao enfatizar a importância da linguagem e da compreensão na interpretação de textos, em sua hermenêutica, acaba indiretamente contribuindo com ideias para a filosofia da linguagem. Cabe, no entanto, deixar claro que mesmo tendo feito algumas contribuições neste campo de estudos, Schleiermacher não é um filósofo da linguagem em sentido estrito.
Schleiermacher apresentou contribuições significativas para a filosofia da linguagem, numa abordagem que encontra suas origens em sua filosofia da religião e na experiência religiosa.
A linguagem tem um papel muito importante na experiência religiosa. A linguagem é o meio pelo qual as pessoas podem expressar sua relação com o divino e compartilhar esta experiência com outras pessoas.
Entendia que havia uma conexão entre linguagem e religião, sendo a filosofia da linguagem inseparável da religião. A linguagem religiosa é uma forma toda especial de linguagem que expressa a experiência religiosa da dependência absoluta do divino.
Também se encontra a linguagem vinculada à elaboração de sua hermenêutica, arte de interpretação de textos. Quando interpretamos textos religiosos, a correção desta interpretação depende da compreensão da linguagem religiosa e da experiência religiosa transmitida por tal texto.
Schleiermacher enfatizou que a linguagem religiosa se apresenta como única e requer uma abordagem hermenêutica especial. A linguagem se torna importante na expressão da experiência religiosa e na comunicação espiritual.
A linguagem se mostra como principal canal para a expressão da experiência religiosa. A linguagem religiosa permite comunicar a relação do sujeito com o divino, não podendo ser reduzida simplesmente a símbolos, pois, é uma tentativa de transmitir uma experiência interna única. Sem a linguagem não seria possível compartilhar a experiência religiosa e esta permaneceria solitária e inexpressiva.
Em síntese, a filosofia da linguagem presente na obra de Schleiermacher mostra-se essencial ao seu pensamento, em particular no tocante á experiência religiosa e à hermenêutica. Schleiermacher reconhece a importância da linguagem na expressão da relação do sujeito com o divino, bem como, na interpretação de textos religiosos e outros. Temos que a filosofia da linguagem presente neste autor enfatiza a importância presente na linguagem para a expressão da experiência religiosa do sujeito em sua relação com o divino, bem como, torna o correto uso e compreensão da linguagem importante na compreensão de textos religiosos e outros.
6- ALGUMAS DAS SUAS PRINCIPAIS OBRAS
1- "Sobre a Religião: Discursos aos Educandos" ("Über die Religion: Reden an die Gebildeten unter ihren Verächtern"), 1799.
Este livro é uma coleção de discursos ou palestras que Schleiermacher originalmente dirigiu a um público acadêmico. Nesta obra, Schleiermacher explora a natureza da religião e sua relação com a cultura e a educação. Ele argumenta que a religião não pode ser separada das influências culturais e históricas e promove a compreensão da religião como uma parte intrínseca da cultura.
Schleiermacher argumentou que a religião não pode ser reduzida a meros dogmas ou rituais, mas é uma experiência interior, uma sensação de dependência absoluta ou um sentimento de conexão com o divino. Ele também enfatizou a importância da interpretação pessoal da religião, afirmando que a religião é uma questão de experiência individual e subjetiva. Schleiermacher desafiou as visões religiosas tradicionais de sua época, enfatizando a experiência direta e emocional de Deus, em contraste com uma abordagem puramente intelectual ou dogmática.
2- "Monólogos" ("Monologen"), 1800.
Este livro consiste em uma série de monólogos em que Schleiermacher discute questões filosóficas e religiosas, incluindo sua abordagem à hermenêutica, a relação entre o indivíduo e o divino e a importância da experiência religiosa.
3- "Sermões" ("Predigten") - Diversas edições entre 1810 e 1832.
Schleiermacher era um renomado pregador e seus sermões refletem sua abordagem à religião e à teologia. Eles exploram uma variedade de temas religiosos e éticos.
Silvério da Costa Oliveira.
Prof. Dr. Silvério da Costa Oliveira.
Site: www.doutorsilverio.com
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