Por: Silvério da Costa Oliveira.
Heráclito de Éfeso
O caminho para cima e o caminho para baixo são um único caminho.
Heráclito
A guerra é mãe e rainha de todas as coisas; alguns transforma em deuses, outros, em homens; de alguns faz escravos, de outros, homens livres.
Heráclito
Um vale aos meus olhos dez mil, se é o melhor.
Heráclito
Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio.
Heráclito
Heráclito de Éfeso (544/540-470 a.C.), segundo a tradição, nasceu em uma família nobre, mas abdicou de seu status e não se interessou pela política da cidade. Com relação a sua vida, pouco ou quase nada se sabe ao certo e é provável que algumas histórias pitorescas que nos chegaram sejam inventadas. No final de sua vida teria se isolado e se afastado da cidade, retornando a mesma doente. Ele teria desenvolvido um quadro de hidropisia ou edema, que consistiria no acúmulo anormal de líquidos pelas células e cavidades do corpo, resultando em inchaços e mal funcionamento dos órgãos. Alguns afirmam que teria procurado os médicos de sua época e feita a pergunta enigmática, se estes seriam capazes de transformar uma inundação em seca, ao que os médicos não sabiam o que responder e por isto não foi por eles tratado de sua doença. Há comentadores que narram o fato bizarro e provavelmente falso, que na tentativa de se curar, teria se enterrado no esterco de vaca e, estando irreconhecível, fora comido por cachorros.
Na obra clássica de DIELS, Hermann; KRANZ, Walther, “Os fragmentos dos pré-socráticos”, ano: 1960, (original com 1606 páginas PDF) originalmente em grego e alemão, são listados comentários oriundos da doxografia, fragmentos dúbios ou falsos, imitações e um total de 126 fragmentos tidos como pertencentes ao próprio Heráclito.
Devido ao estilo enigmático de sua obra e vida, já na Antiguidade o filósofo teria sido designado como “o obscuro”. Segundo ele todas as coisas estão em movimento e mudança constante. Põe ênfase, no entanto, não na mudança e movimento e sim no logos que permite a coerência presente em tudo, atuando como elemento de ordenação de todas as coisas. Também cabe destaque a importância do elemento fogo. O logos é co-extensivo ao fogo. Cabe ao logos ser constitutivo real e ao fogo ser constitutivo cósmico primário de todas as coisas.
Existe uma fórmula ou plano unificador dado pelo logos que permite a unidade essencial de todos os opostos. Segundo Heráclito, os opostos interagem entre si de modo equilibrado em meio as mudanças e ao movimento permanente, deste modo, por baixo das aparências existe uma unidade presente a todas as coisas. Em todas as coisas temos a formação de uma unidade. Heráclito dá como exemplo a tensão sofrida pelo arco flexionado para disparar a flecha ou das cordas da lira quando tocadas, pois, em tudo há harmonia, mesmo que invisível.
Heráclito há de propor a existência de um equilíbrio dinâmico presente em todas as coisas, este equilíbrio se dá entre forças opostas e é por meio do qual que a coesão do cosmos é mantida. Para Heráclito temos a permanente unidade do Ser, mesmo diante da pluralidade e mutabilidade de tudo. Esta permanência do ser se dá por meio do logos, o qual fornece uma harmonia originada da tensão constante entre os opostos.
Heráclito nos dá o exemplo de um rio, no qual não é possível banhar-se duas vezes, pois quando a mesma pessoa entra no rio pela segunda vez o rio não é mais o mesmo uma vez que as águas ali presentes já são outras, as águas estão correndo e mudando. Um de seus discípulos, Crátilo, fez uma modificação nesta alegoria, afirmando que não somente o rio, mas a própria pessoa que tentaria entrar uma segunda vez, também mudaria, deste modo, uma mesma pessoa sequer conseguiria entrar em um mesmo rio uma única vez, em virtude da contínua mudança de ambos (rio e pessoa).
Interessante que apesar de toda a mudança que vemos ao nosso redor, tudo aparenta continuar sendo a mesma coisa. Há quem destaque o fluir de tudo em Heráclito, mas o fazendo esquece-se da vital importância presente no logos enquanto princípio ordenador de toda transitoriedade que encontramos na realidade ao nosso redor.
Certa vez soube de um comentário idiota de um professor que disse que poderia entrar debaixo da queda d’água provocada por uma calha de telhado em um dia chuvoso e sair seco. O tal professor realmente o fez para provar isto para seus alunos, que muito riram quando o viram sair todo molhado debaixo d’água. Em um rompante de inteligência duvidosa, afirmou para seus alunos que de fato não se molhou, pois o homem que entrou embaixo d’água não era o mesmo homem que dali saíra e nem a água era a mesma, em uma alusão a Crátilo. Em verdade, já defendi certa vez em outro texto que este professor não entendeu qual a ênfase correta no tocante ao pensamento de Heráclito. Ele somente ressalta a mudança constante, esquecendo que o realmente importante não é isto, e sim a unidade do todo dada pelo logos, ou seja, apesar de toda mudança que observamos, do rio e do homem dentre outras coisas presentes no movimento contínuo de tudo, o rio, o homem, e a água da chuva que cai do telhado pela calha continuam sendo os mesmos e o professor encontra-se totalmente molhado sem compreender de fato a filosofia de Heráclito.
Platão e Aristóteles nos apresentam uma visão tendenciosa do pensamento de Heráclito, talvez influenciada por Crátilo. Não penso ser correto afirmar que Heráclito contraria o princípio do terceiro homem, de Aristóteles, ou o princípio de não contradição, também de Aristóteles. Cabe lembrar que os opostos não se manifestam simultaneamente e sim sucessivamente em um movimento eterno de transformação. Em virtude do eterno combate entre os opostos, do qual sucessivamente um ou outro predomina, Heráclito pode ser considerado alegoricamente, não o fundador da dialética, mas sim o precursor da dialética.
Em Heráclito observamos um real avanço em relação aos filósofos anteriores, da Escola Jônica de Mileto, na medida em que este não somente propõe um elemento material primordial, o fogo, como também aponta para a unidade dos opostos presente na realidade, de modo que este real passa a ser simultaneamente uno e plural. A mudança e o eterno devir tendem a decorrer da passagem ou do fluxo de um pólo ao outro entre os diversos opostos. Os pares de opostos tendem a formar uma unidade, daí o aspecto simultaneamente uno e plural da realidade. Ao contrário de Anaximandro, que também nos fala de opostos que se sucedem no tempo, cabe lembrar que para Anaximandro este movimento é entendido como um conflito entre opostos no qual a predominância de um sobre o outro geraria uma injustiça que deveria ser paga com a substituição deste por seu oposto, como no caso do inverno e do verão, e esta substituição da condição de prevalência seria entendida como uma punição pela injustiça cometida. Já para Heráclito esta guerra entre pares de opostos não é oriunda de uma injustiça e nem a substituição de um por outro oposto é visto como punição. É desta guerra que surge a harmonia do mundo e se não houvesse esta guerra não haveria o mundo, pois, só há existência possível no devir. Tudo existe na condição de fluxo constante.
Apesar de a tradição ter aproximado o pensamento de Heráclito dos três filósofos de Mileto, Tales, Anaximandro e Anaxímenes, pensamos que há uma aproximação evidente com o filósofo da unidade, Parmênides. Heráclito constata a mudança constante, o eterno fluxo incessante (panta rei = tudo flui), mas destaca a unidade presente a partir do logos enquanto princípio ordenador. O que mais representa este filósofo não é o fluxo constante, o devir, o qual é constatado pelo filósofo, mas sim que apesar de tudo isto, as coisas permanecem e não há um total caos e sim uma ordem subjacente a tudo que existe e esta unidade entre os pares de opostos em guerra gera uma harmonia presente a partir de um princípio ordenador, da unidade na pluralidade, da razão, do discurso, da lei universal da existência, da medida que rege o conflito, do logos.
Em Heráclito temos a ideia de que a verdadeira constituição das coisas é uma estrutura tal que se mostra oculta a mera percepção humana e nela temos que tudo que se apresenta a nós como uma pluralidade é uma unidade.
Com relação a frase de Heráclito sobre a impossibilidade de adentrar duas vezes no mesmo rio, cabe reparar que as águas estão em constante movimento, de modo que as águas quando da segunda entrada no rio não serão mais as mesmas, mas que o rio enquanto processo não se movimenta, ele, enquanto rio, continua imóvel onde está e as coisas que compõe o seu redor também, como é o caso das pedras e vegetação, o que se move é as águas e o que mais estiver nelas contido. Entre uma entrada e outra deste homem no rio, este tende a permanecer, claro que o mesmo também se transforma, mas em um período mais longo e claro que não estamos falando de micro transformações e sim disto tudo enquanto macro processo visível a mera observação. Mesmo no movimento incessante do rio temos uma unidade que permanece, que é o próprio rio, as leis que o regem, o logos.
O rio pressupõe movimento e regularidade de acordo com dada medida, de modo que o rio enquanto entendido como processo é estável, o rio não se move, mesmo as águas nele presente estando em constante movimento.
Sem dúvida, Heráclito enalteceu a mudança com fortes traços dramáticos e bastante clareza, no entanto cabe lembrar que paralelo a ideia de mudança temos a ideia de medida e a estabilidade que persiste por meio desta medida, das leis nela presentes. A ênfase deve ser posta não na mudança e sim na regra, que é a medida que determina todo o processo de transformação que observamos, que percebemos ao nosso redor. Menos que teorizar sobre o fluxo constante, temos em Heráclito a percepção da unidade escondida na contínua mudança percebida, de modo a vislumbrarmos uma medida constante e eterna que há de estruturar esta mesma unidade.
Quando falamos em processo, entendemos também que trata-se de algo estável que tem como principal característica a existência de regras que atuem como leis determinantes de seu comportamento. O logos atua como uma regra universal, estável, fixa, eterna, imutável, que há de regulamentar toda a transformação. Daí o logos enquanto lei, razão, discurso racional. Da resultante dos contrários temos não somente uma unidade, como os dois lados de uma mesma moeda, mas também a identidade e permanência em meio ao fluxo constante. Aliás, tudo flui ou panta rei, é uma constante no pensamento de Heráclito, mas deve ser entendido mediante a presença do fogo representando a transformação e mudança e do logos representando a lei que há de reger todo o processo para termos uma unidade, identidade e coesão que torna possível a existência e a vida.
Silvério da Costa Oliveira.
Prof. Dr. Silvério da Costa Oliveira.
Site: www.doutorsilverio.com
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