Por: Silvério da Costa Oliveira.
Mestre Eckhart
Mestre Eckhart (1260-1328), ou Eckhart de Hochheim, apresentado por alguns comentadores como sendo o “pai da teologia mística”. O termo “mestre” na frente de seu nome faz uma referência aos títulos acadêmicos obtidos quando de seus estudos na universidade de Paris. A palavra “Meister”, que normalmente acompanha a frente de seu nome, é o termo alemão para “Master”, no inglês, ou “Mestre”, no português, referindo-se ao “Magister” título académico em teologia (magister sacrae theologiae) que obteve em Paris.
Nasce na cidade de Tambach-Dietharz (distrito de Gota, Estado da Turíngia), na Alemanha, e quando próximo de seu falecimento, encontrava-se na cidade de Colônia, também na Alemanha, mas segundo alguns comentadores, em 1328 ele havia deixado Colônia para se direcionar a cidade francesa de Avignon, onde na época se encontrava a corte papal, para apresentar sua defesa contra as acusações de heresia, mas morreria em Avignon antes do final do julgamento. Tendo sido julgado, o papa João XXII condenou como heréticos trechos de sua obra. Hoje paira uma certa dúvida e polêmica neste quesito, alguns, dentre os quais autoridades de relevo dentro da Igreja, consideram seu pensamento como ortodoxo, apesar da antiga condenação.
Em verdade pouco se sabe sobre sua vida, seu nascimento e morte, infância ou outros dados marcantes da vida de uma pessoa, mesmo o local de seu falecimento é incerto e há os que afirmam que faleceu na cidade de Colônia, na Alemanha, e outros que afirmam que faleceu na cidade de Paris, na França, seu túmulo não foi achado e nada sabemos ao certo sobre o local de seu sepultamento. Acredita-se que escreveu uma vasta obra e grande parte dela foi perdida, talvez a perda tenha sido motivada pela condenação papal de algumas de suas teses como sendo heresias, mas também não se sabe ao certo o que ele teria ou não escrito e mesmo sobre os escritos que nos chegaram em latim e alemão, em particular os sermões, ainda paira dúvidas sobre a autenticidade de muitos textos.
Frade dominicano, professor, teólogo e filósofo. É considerado por diversos comentadores como sendo um místico e também representante do neoplatonismo na baixa Idade Média. Ingressa na Ordem dos Dominicanos em 1265. Considerado por alguns comentadores como sendo o maior místico especulativo (o termo “especulativo” faz referência à forte presença de uma dimensão intelectual e racional em seu pensamento) alemão medieval. Sua obra é redescoberta no século XIX, quando são encontrados manuscritos de sua autoria e também em virtude de terem diminuído as pressões contrárias por parte da Igreja. Escreveu sua obra em latim e alemão.
Em Paris atuou como professor ocupando por duas vezes a cátedra de teologia destinada aos dominicanos não-franceses, entre 1302-1303 e novamente entre 1311-1313, fato este que não era comum e que só havia ocorrido anteriormente com Tomás de Aquino.
Após ingressar na Ordem Dominicana, vai a Paris para estudar, então contava com 17 anos de idade. Após seus estudos em Paris, em 1280 vai a Colônia, Alemanha, onde segundo alguns comentadores estuda teologia com Alberto Magno (1193-1280), se bem que pelas datas tal fato não me pareça possível, além do mais, levando-se em conta a perda de memória nos últimos anos de vida de Alberto e sua consternação pela morte de Tomás de Aquino (1225-1274). Em 1302 recebe o título de mestre em teologia pela universidade de Paris. Em 1303 torna-se provincial da Saxônia; de 1314 a 1322 ocupa o cargo de vigário geral da ordem em Estrasburgo. Em 1323 vai a Colônia onde se dedica a proferir sermões, ao ensino de teologia e à produção intelectual. Em 1326 começa o processo contra suas obras, pelo motivo de as mesmas poderem ser heréticas.
A bula papal (In agro dominico), que acabou tendo sua divulgação restrita à região do baixo-reno e a cidade de Colônia, condena dezessete proposições como heréticas e põe sob suspeita outras onze, mas ressalta que a intenção de Mestre Eckhart era de permanecer ao lado da ortodoxia, indo, portanto, de encontro com o sermão proferido em 24 de janeiro de 1327 pelo secretário particular de Eckhart, onde neste documento escrito em latim pode se ler que Eckhart declara antecipadamente rejeitar todo erro de ortodoxia que possa ser encontrado em suas obras. O que temos, portanto, e de modo simplificado, é um processo por heresia, um julgamento e uma nota de censura.
Na Alemanha, em Colônia e região, teve como atividade marcante e da qual se originaram cerca de 150 sermões, resultado de ouvintes que os transcreveram, a pregação constante às monjas dominicanas em seus mosteiros, aos quais costumava visitar com frequência. Nestes sermões em língua alemã, temos o comentário de textos da liturgia.
Entendia que a alma individual se unia a Deus e seu pensamento se mostra original a partir da fusão de ideias e pensamentos oriundos da cultura filosófica dos gregos antigos, dos neoplatônicos, dos árabes, do pensamento de Aristóteles e também dos escolásticos da baixa Idade Média, dentre os quais destaco Alberto Magno, introdutor e comentador da obra de Aristóteles. Segundo seu pensamento, o humano e o mundo nada são sem Deus e em sua obra procura uma justificação da fé que não implique em um suporte dado pela razão.
O pensamento de Mestre Eckhart deve ser entendido, como o querem alguns comentadores, como “místico”, com um certo cuidado, pois, não se trata em hipótese alguma da presença de um anti-intelectualismo ou da defesa de uma experiência mística e religiosa pessoal e incomunicável. Nele temos discussões, demonstrações e argumentos racionais. Nesta forma de apresentar o pensamento, observamos em Eckhart a ideia de que a revelação contida na Bíblia pode ser descrita por meio de argumentos racionais e de que a fé e a razão não estão em oposição, ao contrário, tendem a uma integração dentro de uma totalidade harmônica, ideia esta já apresentada por autores anteriores.
No tratado “Do desprendimento” encontramos o fundamento da mística de Eckhart, já presente no próprio título da obra, o “desprendimento”. As virtudes são para as criaturas, mas para superar a própria condição de criatura em direção a Deus, somente pelo desprendimento. Pela contemplação mística obtemos o retorno ao ser supremo, mas tal objetivo não deve ser atingido pelas virtudes e sim pelo desprendimento de si próprio, uma aproximação de Deus totalmente desinteressada, não motivada por qualquer interesse pessoal. Mesmo diante da caridade estamos desejando algo, já diante do desprendimento nada desejamos, ao se livrar de tudo e contemplar o nada, só resta a Deus. Neste tocante, seu entendimento sobre o desprendimento o aproxima de Avicena neste mesmo ponto. Segundo Avicena, diante do desprendimento do ser, Deus tende a vir ao seu encontro. Segundo o pensamento de Eckhart, ao nos esvaziarmos de tudo, nos enchemos de Deus e ao nos enchermos de tudo, nos esvaziamos de Deus. Pelo desprendimento entende que devemos nos desapegar totalmente das paixões, dos desejos, das criaturas e do mundo.
Dentre os principais temas abordados por Eckhart em sua obra, podemos citar: 1- o desprendimento, 2- o nascimento da palavra na alma, 3- a nobreza da natureza humana quando absorvida pela divina, 4- a contemplação enquanto instrumento que permita o acesso a patamares mais altos de espiritualidade, 5- consolação.
Quanto ao item 1, deprendimento (abandono, largar, deixar ir), podemos dizer que para Eckhart trata-se de algo mais nobre e elevado que qualquer outra virtude. Pelo desprendimento nos esvaziamos de tudo e obtemos uma união íntima com Deus.
No item 2, entende que é no fundo de nossa alma que nasce a palavra ou filho de Deus, no fundo de nossa alma encontramos uma luz incriada e incriável que pode receber a Deus imediatamente sem intermediários. No fundo de nossa alma, sem palavras ou imagens, podemos ter uma união mística com Deus no mais profundo vazio e nada. É preciso estar vazio de tudo para permitir que Deus possa atuar.
No item 3, nobreza da natureza humana absorvida pela Divina, centelha da alma (scintilla animae), ou seja, o intelecto, algo não criado na alma, mas ali presente pela bondade divina. Trata-se de uma potência suprema e altíssima que permite que a alma se abra para a influência de Deus como verdade, amor, bondade. A nobreza provém do fato da natureza humana proporcionar este encontro com Deus alcançado pela graça Divina. Pensando de modo místico, temos o nascimento de Deus no interior do humano, o que realça a nobreza divina em todos os humanos. A imagem de Deus está presente em cada humano.
No item 4, a contemplação, o termo aparece em Eckhart mais como atitude do que como teoria. Entende o autor por tal noção o processo de participação do ser e não nossa relação com o mundo exterior e a natureza. A mística presente em Eckhart se funda na ação e na vida ativa e não meramente na reflexão. Não há em Eckhart um direcionamento para a passividade, a aceitação de um ser estático, uma vida silenciosa e sem esforço, em total marasmo, ou um entorpecimento da pessoa voltada para si mesma. Pela contemplação conseguimos a comunhão direta com Deus, passando antes pela contemplação dos segredos e glória de Deus ocultos nas criaturas por Ele criadas presentes na natureza.
No item 5, consolação, temos o sofrimento e a miséria humana que encontra a consolação em Deus. Ele tem uma obra sobre este tema, o livro “Da divina consolação”, onde é abordado tanto questões de filosofia e metafísica sobre o tema, bem como analisa a influência política e religiosa em tais questões humanas. Nesta obra o autor não enaltece simplesmente o sofrimento humano, mas busca exaltar as possibilidades de crescimento que a pessoa pode encontrar em tais situações de dor e sofrimento.
Como representante da mística germânica, Eckhart entende ser Deus um ser perfeito, o Uno, elemento de conciliação de todos os opostos e que o caminho que leva a Deus se dá por meio da via negativa, na qual deve haver o desligamento de todos os conceitos e imagens, para a total imersão no nada do qual advém à divindade. Retirando o “eu” do centro e buscando no nada e no vazio, no não-ser, a abertura para a luz da divindade.
Em Êxodo, capítulo 3, versículo 14 Deus diz a Moisés “Eu sou o que sou”. Analisando esta frase, Tomás de Aquino chega à conclusão de que em Deus a existência se iguala à essência, sendo ambas a mesma coisa, mas isto somente em Deus, pois, nas demais criaturas a essência de algo é diferente de sua existência, podendo algo ter sua essência e não existir. Neste tocante específico Mestre Eckhart discorda de Tomás de Aquino.
Se pensarmos conjuntamente com mestre Eckhart, temos que a frase “Eu sou o que sou” é uma tautologia, ou seja, trata-se de uma afirmação que é sempre verdadeira, uma vez que o que é afirmado como atributo do sujeito é o próprio sujeito. Temos uma redundância, onde por meio de palavras diferentes expressamos exatamente a mesma ideia. A frase tem infinitos significados. Para Eckhart Deus esconde sua identidade por meio de tal frase. O que pode significar que o Divino é para nós insondável. Estamos nos reportando ao Uno de Plotino, a algo inatingível. Deus é inexplicável, inexprimível, inefável. Estamos diante do não saber, porque não é possível. Não temos como conhecer a Deus.
O melhor modo de pensar a identidade de Deus é pensa-lo como um “não ente”, a negação de tudo. Do nosso ponto de vista humano o melhor modo de pensar a Deus é como sendo nulo, nada, vazio.
Não é possível saber qualquer coisa sobre a identidade de Deus. Temos de ao compor uma frase, o fazermos na negativa, negando o afirmado e depois negar novamente. Negar e depois negar a negação sempre. Vejamos um exemplo: Deus não é bom; Deus não é “não bom”. E o mesmo vale para qualquer outra qualidade, como, por exemplo: alto, belo, sólido, tudo enfim.
Esta argumentação nos encaminha para a via apofática, para uma teologia negativa, na qual só podemos falar de Deus indiretamente, não havendo atributos positivos que possamos conferir a Deus e sim somente dele falar pela via negativa dizendo o que ele não é. Todo atributo ou qualidade com o qual possamos tentar definir o que seja Deus estará sempre aquém de Deus, por tal modo limitamos a Deus, pois, este tende a ultrapassar toda a nossa capacidade racional para o entender.
Deus é muito mais que todas as coisas existentes, que todos os seres, logo, Deus não é o “ser”, o “ser” está em Deus, mas não é Deus. E neste ponto mestre Eckhart se afasta de Tomás de Aquino, para quem Deus é o “ser”. O Divino está além de todo “ser”, é um “ser” “super ser”. É a potência de tudo que existe. Deus é a pureza do ser. Deus enquanto infinito não é “ser”, se bem que inclua o “ser”.
Quando pensamos na frase “eu sou o que sou”, podemos entender a criação como um ato de pensamento, Deus é pensamento. Como já falei acima, a frase proporciona infinitos significados. Podemos entender Deus como pura autoconsciência, pensamento do pensamento. Deus é pensamento pensante.
Deus é o infinito atual. Deus é o pensamento pensante. Aqui cabe diferenciar o panteísmo (pan – te - ismo) do panenteismo (pan – ente – ismo). No panteísmo tudo é Deus, onde Deus se identifica com a criação, e onde observando a criação observamos a Deus, um Deus imanente, pois Deus é a criação. Já no panenteismo todas as criaturas são parte de Deus, Deus é o pensamento pensante que enquanto pensa cria. No panenteismo a ênfase está no ente. Tudo está em Deus e faz parte de Deus, mas Deus é muito maior que tudo isto, ele não se limita a ser imanente a criação, ele transcende a criação.
Podemos afirmar que tudo é pensamento de Deus, que a própria criação é parte do pensamento de Deus. Deus é o pensamento autoconsciente de seu pensamento. A criação não é um ato instantâneo, mas contínuo e permanente. Deus continua a pensar e a criar ininterruptamente. Deus continua a pensar, continua a criar porque Deus é essencialmente amor. A característica principal de Deus é o amor. A criação se identifica ao pensar e por sua vez se identifica ao amor. Amar significa criar e criar significa pensar, trata-se de uma atividade criativa. Pensar significa criar. A criação é contínua, Deus continua a pensar e a criar, pois o amor de Deus é infinito.
Deus pensa na luz, é a luz. É enquanto pensamento de Deus, enquanto pensado. A criação é o pensado do pensamento. Deus é o criador com o pensamento pensante. O pensamento pensante de Deus. Logo, tudo é pensamento. A matéria em si não é outra coisa que pensamento de Deus. A matéria é um tipo ou forma de pensamento. Trata-se de um idealismo ao máximo grau. A matéria é a objetividade do pensamento Divino. Deus é pensamento que se pensa. É pensamento auto-pensante.
Podemos entender a produtividade como sinônimo de criatividade e como sinônimo de amor. A criação é permanente, contínua e não um instante de tempo porque a atividade do pensamento é contínua e constante. Amor igual a pensamento igual a criação.
Deus é Uno, transcendente, uma absoluta unidade. Em Deus não há diferença entre amor, pensamento e criação. Trata-se de uma unidade indiferenciada. A criação é fruto da vontade livre de Deus que cria e continua criando e não pode não poder pensar e criar.
O verbo de Deus é inteligência, mente, pensamento. O mundo, e nós, somos pensados. Pensar é criar e o criado é pensado. Não há diferença entre pensar e criar. A essência de criar e pensar é o amor, porque pensar e criar é um ato de amor. Deus é amor infinito, super amor. Não pode não pensar e não criar. Já que sua essência é amor, é necessário que pense e crie. O universo, a criação, são co-eternos a Deus. A criação não é necessária e nem não necessária, já Deus é qualquer coisa que não podemos conceber, inominável. O mundo é correlato e co-eterno a Deus. Nós somos em Deus. Deus é impresso à criação enquanto pensamento pensante, puro, total, potência prima de tudo.
Deus é autoconsciência infinita e nós humanos somos a autoconsciência finita, limitada. Minha identidade mais profunda, enquanto humano, é Deus. O humano, diferentemente de todas as outras criaturas criadas, é semelhante a Deus porque é autoconsciente. Uma das identidades que se pode atribuir a Deus é a autoconsciência: “eu sou o que sou”. Deus é uma autoconsciência infinita e o humano uma autoconsciência finita. O humano tem uma constituição privilegiada, pois, foi feito a imagem e semelhança de Deus. A semelhança consiste no fato de ser o humano uma criatura autoconsciente, dotado de uma alma racional. A mente humana é consubstancial a mente de Deus. É parte da mente de Deus. A diferença é que a mente de Deus é infinita e a humana finita.
Deus não é físico, é pensamento pensante. Deus é o fundo de nossa autoconsciência, de nossa alma, de nossa mente. Podemos aqui lembrar de Hegel, quando este nos afirma que: “O local pelo qual eu contemplo Deus é o local pelo qual Deus me contempla”.
Em mestre Eckhart temos uma ética que se assemelha a ética de Epicuro, mas também temos presente a semelhança com Agostinho quando ambos, Agostinho e Eckhart, afirmam que agir livre significa agir para o Bem.
A filosofia de Eckhart se baseia na ideia do êxtase místico pelo qual o humano se encontra com Deus no interior de si próprio. Uma união com a mente Divina. Unir-se com Deus em uma união mística, abandonar-se completamente a vontade de Deus e renunciar ao próprio querer, renunciar completamente a própria vontade egóica: É Deus que quer em mim. Se abandonar a vontade de Deus.
Muito importante em Eckhart é a ideia de contemplação ativa e seu posicionamento contrário à contemplação passiva. Cabe citar o evangelho de Lucas, capítulo 10, versículo 38 a 42, onde Jesus é acolhido na casa de duas irmãs, Marta e Maria. Enquanto Marta preparava a refeição, Maria se colocou sentada junto a Jesus e Marta pediu que Jesus a mandasse ajuda-la. Eckhart interpreta esta passagem de modo distinto da tradição, valorizando a Marta e não a Maria. Para Eckhart, Maria representa o estado de contemplação passivo e Marta o ativo. Para mestre Eckhart ao contemplarmos Deus o devemos fazer de modo ativo, sem deixar nossas atividades junto à comunidade, sem deixar de ajudar os que precisam, sem deixar de lado a caridade.
Silvério da Costa Oliveira.
Prof. Dr. Silvério da Costa Oliveira.
Site: www.doutorsilverio.com
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