Por: Silvério da Costa Oliveira.
Os Universais
“Mox de generibus ac speciebus illud quidem, sive subsistunt sive in solis nudis purisque intellectibus posita sunt sive subsistentia corporalia sunt an incorporalia, et utrum separata an in sensibilibus et circa ea constantia, dicere recusabo. Altissimum enim est huiusmodi negotium et maioris egens inquisitionis”.
“No momento, em relação aos gêneros e às espécies, diz Porfírio, me absterei de
falar, (1) se eles subsistem ou são colocados unicamente nos intelectos puros e
nus, e, se eles subsistem, (2), se são corpóreos ou incorpóreos e (3) se são
separados dos sensíveis ou colocados neles e constantia circa ea, pois este
trabalho é assaz árduo e supõe uma longa pesquisa”. BOÉCIO, Porphyrii
Introductio in Aristotelis Categorias a Boethio translata (em A. DE LIBERA, PH.
SEGONDS, Isagoge, texte grec, translatio Boethii, Paris, Vrin, 1998, 1).
O debate travado prioritariamente durante a Idade Média, se bem que prossiga até os dias atuais em alguns pensadores, recebeu o nome de “problema dos universais” ou “querela dos universais” por alguns comentadores. Por universais designamos aquelas palavras que não se reportam a um indivíduo singular e sim a um grupo inteiro de indivíduos que são deste modo designados como se fossem um único ente, apesar das possíveis diferenças existentes em cada um dos seus membros isoladamente.
Afinal, e esta é a grande questão envolvendo este debate, os universais são coisas ou palavras? Sua origem no debate medieval provém de Boécio (sua tradução do grego para o latim do prefácio de Porfírio ao Isagoge – Introdução às categorias de Aristóteles), se bem que suas raízes mais profundas sejam encontradas no pensamento, ou nas interpretações do pensamento, de Platão e Aristóteles.
A origem última dos realistas há de ser encontrada em uma referência à obra de Platão, quando este nos fala do mundo das ideias no qual haveria uma ideia perfeita de cada coisa e tudo que nos cerca não passaria de sombras imperfeitas destas ideias, como se estivéssemos presos em uma caverna impedidos de ver a luz e as coisas reais tais como elas de fato são. Por sua vez, a origem última dos realistas moderados há de ser encontrada nas obras de Aristóteles. No meio deste caminho histórico esta temática se mesclou com a elaboração e desenvolvimento da teologia cristã e deste modo, se temos um Deus criador todo poderoso este deveria ter alguma relação com os universais.
O universal se diferencia do individual, segundo Aristóteles, quanto ao gênero. O universal se opõe ao particular, pois, enquanto o particular se refere a um único objeto, o universal faz referência a uma multiplicidade de objetos. O individual é uma entidade concreta, particular e singular que aponta para um único indivíduo, já o universal é uma palavra que faz referência a um grande número de indivíduos. Sebastião, Manuel, Márcia e Cristina são particulares, pois cada nome se reporta a um único e determinado indivíduo que pode ser apontado e diferenciado dentro do grupo. Já expressões tais como: alto, baixo, magro, gordo, belo, feio e outras mais, são noções genéricas e abstratas que podem ser aplicadas a grupos inteiros de indivíduos. Também neste caso se encaixam termos tais como: homem, mulher, leão, cão, gato, etc.
O grande problema medieval desenvolvido acerca dos universais é sobre o seu status ontológico, ou seja, se existem ou não na realidade. Como tal, teve e tem importância e relevância em áreas tais como a lógica, a teologia e a teoria do conhecimento, dentre outras. A origem do problema medieval pode ser buscada a partir dos textos de Boécio e reportada até Porfírio e depois a Platão e Aristóteles.
Ao analisarmos a obra dos diversos autores sobre este tema, encontramos que o problema dos universais em linhas gerais pode encontrar três soluções possíveis, a saber: 1- realismo, 2- nominalismo e 3- conceitualismo (conceptualismo). Tanto o realismo, como também o nominalismo, podem variar de autor para autor, de modo que também poderíamos subdividi-los em três: 1- absoluto, 2- exagerado e 3- moderado. Já o conceitualismo se encontra como uma posição intermediária entre o realismo e o nominalismo e por tal motivo às vezes torna-se difícil separar e identificar entre um pensador se este é um nominalista moderado ou realista moderado ou conceitualista, pois, são três posições deveras semelhantes.
Na tese presente ao realismo, os universais existem concretamente e inclusive sua existência antecede a existência dos entes singulares (universalia ante rem). Já no nominalismo temos a tese de que os universais não possuem realidade própria, não são reais. Primeiro temos a existência do singular e somente a partir destes que obtemos o universal (universalia post rem). Na tese nominalista os universais seriam abstrações feitas pelo nosso entendimento a partir da observação das coisas individuais, singulares.
Já no tocante aos nominalistas, segundo a opinião de alguns estudiosos do tema, estes tendem a surgir a partir de Pedro Abelardo (alguns comentadores o entendem como um nominalista moderado, segundo outros comentadores seria um conceitualista ou mesmo um realista moderado), no século XI, e de uma determinada leitura e interpretação do pensamento de Aristóteles. Se pensarmos em linhas gerais nos nominalistas, como, dentre outros, também a Guilherme de Ockham, temos que no geral os nominalistas se opõe ao realismo de Platão e de Aristóteles e entendem os universais como meras palavras, nomes em comum partilhados por um grupo de indivíduos como se fosse uma etiqueta que arbitrariamente foi eleita e aplicada a cada indivíduo singular deste grupo e não o foi a outros indivíduos.
Pode-se introduzir aqui mais dois termos: o conceitualismo e o terminismo. Há quem simplesmente iguale ou pelo menos considere posições muito próximas às existentes entre o terminismo e o nominalismo enquanto que o conceitualismo se aproximaria ou seria igual ao realismo moderado. Mas há também quem considere o terminismo como uma forma de conceitualismo ou de nominalismo. Por vezes conceitualismo e terminismo também são tidos como idênticos na defesa da mesma tese.
Por vezes, em comentadores, os universais são também chamados de entidades abstratas, enquanto que os indivíduos singulares são chamados de entidades concretas.
Vejamos como podemos subdividir cada uma das três divisões básicas mencionadas acima, ou seja: o realismo, o nominalismo e o conceitualismo. O faremos dividindo o realismo e o nominalismo em absoluto, exagerado e moderado. Já o conceitualismo, por ser justamente uma posição intermediária, não será subdivido, mas como já dissemos antes, trata-se de uma posição que em muito se aproxima e iguala tanto ao realismo moderado como também ao nominalismo moderado.
No realismo absoluto os universais existem realmente e todos os indivíduos não passam de cópias ou exemplos destes universais. Aqui nos colocamos diante do filósofo Platão e a tese do mundo das ideias.
No realismo exagerado os universais existem formalmente, sendo a essência de todos os indivíduos. Os indivíduos existiriam com variações ou gradações tornando-os mais longe ou mais próximos dos universais. Aqui também nos colocamos diante do filósofo Platão e a tese do mundo das ideias.
No realismo moderado os universais existem, mas somente como formas das coisas particulares, sem o singular não teríamos o universal (universalia in re). Tanto os universais como também as coisas singulares existiriam, sendo que os universais existiriam em nosso intelecto enquanto compreensão e os entes singulares enquanto seu próprio ser. Aqui temos a presença marcante da influência das teses do filósofo Aristóteles.
O nominalismo absoluto é semelhante ao exagerado, pois, em ambos se afirma basicamente a mesma coisa, a diferença encontra-se em que para o nominalismo absoluto os termos ou palavras que usamos para designar os entes singulares e concretos, são também concretos.
No nominalismo exagerado nega-se a existência de universais e também de seres particulares.
No nominalismo moderado não existem os universais, aqui englobando entidades e conceitos abstratos, somente o que existe são nomes ou termos que usamos para designar entes concretos, particulares, individuais.
Já no conceitualismo, os universais existiriam em nossas mentes, em nosso intelecto, como conceitos somente. Os universais não existiriam independentes da realidade e sim somente como ideias em nossa mente.
No conceitualismo temos uma posição teórica híbrida entre o realismo e o nominalismo, mesclando ambas em uma solução intermediária. Os universais somente existiriam em nossa mente enquanto conceitos mentais, são ideias abstratas. Os universais não possuem uma realidade independente e também não são meras palavras ou sons usados para designar entes singulares. Os universais tem uma realidade existencial sim, mas em nosso entendimento.
As posições ora apresentadas como realismo moderado, nominalismo moderado e conceitualismo em muito se aproximam, de modo que pode ocorrer de um mesmo autor ser classificado ora como nominalista e ora como conceitualista ou mesmo realista moderado, gerando deste modo confusão. Além do mais, todas estas classificações nem sempre dão conta da realidade de cada pensador e sua obra, que por vezes tendem a transitar mais por aqui ou mais por ali, dando trabalho para quem quiser meramente classifica-lo, rotulá-lo e agrupá-lo como pertencente a um grupo específico e deste modo ter a ilusão de tudo compreender sobre o autor no tocante a temática dos universais. O uso destas classificações deve servir como um modo de explicação e compreensão das pesquisas e desenvolvimentos feitos dentro do tema, mas sem jamais ter a intenção de esgota-lo ou mesmo de delimitar o pensamento e obra de dado autor a uma medida ou rótulo estranha a sua obra.
Na tradução da obra Isagoge, de Porfírio, feita por Boécio para o latim, já temos presente o problema dos universais e como este se apresentará e será desenvolvido pelos medievais. Podemos resumir a problemática ali contida no Isagoge da seguinte forma: os gêneros e as espécies existem na realidade ou apenas no pensamento? E admitindo sua existência real, são corpóreos ou incorpóreos? E, ainda, são separados das coisas sensíveis ou estão no interior delas?
Ou dito de outro modo, a partir da tradução de Isagoge executada por Boécio e da sistematização por ele feita, o problema dos universais apresentado nas questões propostas por Porfírio, se estrutura de três modos: 1- Os gêneros e as espécies são realidades subsistentes em si mesmas ou simples conceitos no intelecto? 2- Se reais, são corpóreas ou incorpóreas? 3- Se incorpóreas, existem fora das coisas sensíveis ou somente unidas a estas?
O campo da filosofia que se ocupa dos universais pode ser designado como metafísica e os universais, por sua vez, estão presentes nos mais distintos campos de estudo, como, por exemplo, a lógica matemática. O termo universal é aplicado em duas situações, como propriedade ou como relação. Como propriedade de um ente se apresenta como uma qualidade ou predicado deste ente, como tal é o caso de algo ser vermelho, alto, gordo. Já como relação, encontramos relações de parentesco, tais como, pai, filho(a), mãe, avó, etc. ou relações espaciais e temporais. Em verdade e resumindo, toda e qualquer palavra que se aplique não a um único indivíduo sozinho, mas a um grupo de indivíduos que possuam alguma característica em comum, é um universal, deste modo, humanidade, homem, mulher, cão, gato, pássaro, etc. Algo que há de caracterizar bem os universais é justamente seu contraste com os particulares, como no exemplo do particular “João” e do universal “homem”, ou do particular “Maria” e do universal “mulher”. Uma maneira sintética de se definir o universal se dá pelo uso da fórmula: “o um em todos”.
Se formos às origens na filosofia grega antiga, teremos em Platão o mundo das ideias com uma ideia perfeita de cada coisa existente, ou que já existiu, ou que ainda irá existir, trata-se aqui de um modelo “ante rem”, ou seja, traduzindo do latim temos “antes das coisas” e se baseia nas matemáticas. Pensemos em termos de geometria, por exemplo, um círculo ou um triângulo, qualquer verdade que possamos obter por meio da geometria independe da existência ou não de um círculo ou triângulo no mundo físico. Em verdade, mesmo encontrando círculos e triângulos no mundo físico, estes não terão necessariamente a perfeição exigida da definição ideal de um círculo ou triângulo. Deste modo, podemos facilmente pensar na existência de uma ideia de um círculo ou triângulo perfeito do qual todos os demais encontrados no mundo físico não passariam de cópias imperfeitas.
Já para Aristóteles o modelo não será o das matemáticas e sim, por exemplo, o biológico. Os universais seriam “in rebus”, ou traduzindo do latim, “nas coisas”. A partir deste entendimento não seria possível à existência de universais sem que primeiro existissem os singulares dos quais os universais se originariam. Se imaginarmos a espécie “cão”, por exemplo, não teria sentido falar na mesma sem que antes houvesse animais que se encaixassem nesta definição. Tanto em Aristóteles como também em Platão podemos falar em realismo, sendo que para Platão este realismo seria transcendente, pois faria referência a um mundo das ideias que preexistiria com uma ideia perfeita de cada coisa, já para Aristóteles este realismo seria imanente, pois se basearia na observação dos entes dispostos no mundo.
Dentre os argumentos contrários à existência ontológica dos universais, temos o terceiro homem de Aristóteles, argumento este originariamente formulado contra as formas de Platão e que se propunha a evitar uma injustificada regressão ao infinito. Outro argumento usado contra a existência real dos universais foi o da navalha de Ockham, que busca pela simplicidade e por cortar tudo que não seja estritamente necessário em uma dada explicação.
Silvério da Costa Oliveira.
Prof. Dr. Silvério da Costa Oliveira.
Site: www.doutorsilverio.com
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