Por: Silvério da Costa Oliveira.
Ao pensarmos na
Idade Média, que ocorre em um período de tempo que vai do século V ao XV e
tendo como local a Europa ocidental, podemos discorrer sobre a filosofia
medieval ou sobre a filosofia cristã. A questão com relação à existência ou não
de uma filosofia cristã foi no decorrer da história motivo de controvérsia
entre estudiosos. Para alguns simplesmente é contraditório a expressão
“filosofia cristã”, pois, a filosofia é baseada na razão e tem a esta como
autoridade máxima, questionando a qualquer outra forma de autoridade. Já o
cristianismo é uma religião baseada em dogmas que não podem ser questionados e
que se sobrepõem a qualquer raciocínio lógico, racional ou mesmo a qualquer
abordagem científica.
A filosofia
medieval sofre forte influência da cultura greco-romana e também da religião
cristã. Esta última surge a partir da figura histórica de Jesus Cristo e após
sua morte é espalhada primeiramente por aqueles que conviveram com Jesus e
foram seus discípulos enquanto vivo. Nós chamamos a estes de padres
apostólicos. Em um segundo momento teremos os padres apologistas, que irão
divulgar e defender a nova religião, combatendo contra os desvios dentro do
próprio cristianismo e contra as demais religiões existentes e mesmo contra a
cultura greco-romana representada pela filosofia.
Durante a Idade
Média podemos falar de duas grandes correntes de filosofia, na Alta idade Média
teremos a Patrística e na Baixa Idade Média teremos a Escolástica. O principal
expoente da Patrística, mesmo não tendo vivido na Idade Média e sim na
Antiguidade, é Agostinho de Hipona (354-430), isto por ter influenciado toda a
corrente de pensamento que se seguiu depois. Orígenes de Alexandria (185-253)
exerceu influência sobre Agostinho por intermédio de Ambrósio (340-397) e
poderia ter exercido uma influência talvez maior que este sobre o período
medieval, não fosse ter sido considerado herético pela Igreja e em parte por
tal motivo grande parcela de seus escritos terem se perdido e não chegado até
os nossos dias. Por ser considerado herético, passou a haver um interesse menor
em que os copistas fizessem cópias de seus trabalhos, preservando-os para as
gerações subsequentes. Também por tal fato, a vinculação ao mesmo passou a não
ser interessante e bem vista, podendo levar a acusação de heresia ou a
desconfiança com relação a adotar ou compactuar com um pensamento herético. Já
no tocante à Escolástica, seu maior expoente foi Tomás de Aquino (1225-1274).
Ocorre que do século I ao V temos
vários padres apologistas que irão ter influência no pensamento filosófico
medieval. Se considerarmos a eles e a Patrística, não pelo prisma da filosofia
e sim somente da religião e teologia, poderíamos como alguns comentadores
fazem, considera-los como representantes da Patrística, e esta surgindo no
século I. No entanto, se considerarmos a Patrística como um movimento
filosófico que ocorre na Alta Idade Média e não um movimento unicamente
religioso, não seria correto usar este termo para quem está situado antes do
início da Idade Média. Eu prefiro usar simplesmente o nome de padres
apologistas para este grupo e reservar o termo Patrística para algo posterior.
Deste modo podemos ter uma divisão em quatro: padres apostólicos, padres
apologistas, Patrística e Escolástica.
A estes padres apologistas,
precursores e antecedentes da filosofia medieval, cabe a discussão sobre as
bases da religião cristã que se formava então. Partindo daqueles que se
tornaram conhecidos por defender a religião cristã do século I ao V, podemos
citar: Inácio de Antioquia (35-108), Flávio Justino ou Justino Mártir ou
Justino de Nablus (100-165), Irineu de Lyon (130-202), Atenágoras de Atenas
(133-190), Clemente de Alexandria (150-215/217), Marco Minúcio Felix (150-270),
Tertuliano (160-220), Orígenes de Alexandria ou Orígenes de Cesareia ou
Orígenes o Cristão (185-253), Eusébio de Cesareia ou Eusebius Pamphili ou
Eusébio amigo Pânfilo (265-339), Gregório de Nazianzo ou Gregório Nazianzeno ou
Gregório teólogo (329-389), Basílio de Cesareia (329/330-379), Gregório de
Nissa (335-395), Ambrósio de Milão (340-397), João Crisóstomo (347-407),
Jerônimo (347-420).
Dentre os quinze
padres apologistas citados e outros mais, cabe mencionar que nem todos se
posicionaram do mesmo modo diante da filosofia e da cultura greco-romana.
Alguns se mostraram indiferentes, se atendo aos fundamentos do cristianismo,
outros se mostraram abertamente hostis, vendo a filosofia como uma inimiga a
ser combatida e um terceiro grupo se mostrou amigável a filosofia, tentando
trazê-la para o âmbito da religião cristã.
Indiferentes: Podem ser
entendidos como indiferentes por meio dos escritos que foram preservados até
nossos dias e pelo legado trazido pela tradição sobre quem eram, o que fizeram
e pensaram. Sua maior preocupação se mostrava diante da formação dos dogmas
cristãos, da unidade da Igreja cristã e da afirmação da religião cristã como
independente da judaica, havendo um afastamento das tradições então aceitas e
mantidas pelo judaísmo e a lei judaica expressa no Torá. Citemos: Inácio de
Antioquia, Irineu de Lyon, Atenágoras de Atenas, Gregório de Nazianzo ou
Gregório Nazianzeno, João Crisóstomo, Jerônimo.
Hostis: Entendem que tudo que
possa haver de bom na filosofia proveio dos profetas e que os filósofos tiveram
contato com os escritos sagrados contidos na Bíblia (Antigo Testamento) e
aproveitaram para si as ideias ali contidas. É o roubo dos filósofos, sendo
Moisés aquele que primeiro inspirou aos filósofos gregos. A verdade encontra-se
unicamente nos textos sagrados, que trazem a revelação. A filosofia é
subordinada a religião cristã. Não veem diferença entre filosofia e
cristianismo, sendo este último percebido como um tipo de filosofia e a única
realmente verdadeira. Por vezes não percebem pontos em comum entre filosofia e
religião cristã e entendem a filosofia como representante da sabedoria
greco-romana e adversária da fé, bem como a origem das heresias e desvios da
fé. Alguns chegam a ver uma total oposição entre filosofia e fé cristã.
Tertuliano, por exemplo, mantém sua fé pela mesma ser absurda. Citemos: Flávio Justino,
Marco Minúcio Felix, Tertuliano.
Amigáveis: A filosofia não é algo
ruim, sendo complementar à revelação e não deve se opor a mesma. A verdade
plena encontra-se na revelação, mas outros povos também tiveram acesso a esta
verdade, mesmo que de modo parcial, como uma preparação para a revelação, sendo
a filosofia a forma como o povo grego se aproximou desta verdade. A filosofia
pode ajudar a explicar, entender racionalmente e divulgar a mensagem presente
na revelação. É com Orígenes que se inicia um diálogo positivo entre a religião
cristã e a filosofia, sendo ele a prescrever uma leitura dos textos sagrados de
modo literal e também alegórica, buscando o sentido oculto de certas passagens
aparentemente absurdas. Citemos: Clemente de Alexandria, Orígenes de Alexandria,
Eusébio de Cesareia, Basílio de Cesareia, Gregório de Nissa, Ambrósio de Milão.
A intenção
inicial dos padres apologistas será a divulgação e defesa do cristianismo.
Teremos alguns que terão uma atitude indiferente ou mesmo hostil para com a
filosofia, que será vista como a sabedoria dos pagãos. Outros entenderão que a
filosofia greco-romana e a retórica devem ser absorvidas pela Igreja Cristã,
dando sustentação e explicação aos dogmas religiosos. Deste modo, a filosofia
se subordina à religião cristã, não sendo verdadeira quando nega ou questiona
os dogmas, mas sendo útil como instrumento de defesa da religião e como uma
apresentação racional do cristianismo para uma camada mais culta e versada em
filosofia da sociedade romana. Lembremos que o cristianismo começou e se
expandiu pelas camadas mais simples do império romano e sem o domínio da
cultura greco-romana. Esta mesma cultura erudita poderia ocasionar uma
dificuldade ou resistência quanto à aceitação de uma doutrina vista como
irracional e alheia ao discurso filosófico, daí a importância da filosofia para
ajudar a catequizar as pessoas de classes mais elevadas dentro do império.
Como consequência
deste esforço que começa mesmo antes da Idade Média, teremos como resultado uma
absorção da filosofia pela religião cristã, de modo que esta passa a ter um
elemento de suporte racional aos seus dogmas e isto tende a permitir que
pessoas mais racionais, cultas e instruídas encontrem um ponto em comum com
esta religião e não a vejam em oposição ao bom gosto de quem estudou e se
orgulha de suas conquistas intelectuais. Mesmo nos nossos dias, pessoas cultas
e instruídas não encontram uma contradição em manter uma fé cristã, pois
existem argumentos racionais a favor e explicativos dos dogmas aceitos. O
cristianismo hoje possui uma estrutura racional que outras religiões não
possuem e isto decorre da absorção do pensamento filosófico greco-romano e de
todo um trabalho que começou já na antiguidade com os padres apostólicos e
posteriormente com os padres apologistas e seguiu pelo transcorrer da filosofia
medieval e da elaboração de uma filosofia cristã.
Silvério da Costa Oliveira.
Prof. Dr. Silvério da Costa
Oliveira.
Site: www.doutorsilverio.com
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